Por Eliana Haddad

 

 

Julio Peres é psicólogo, doutor em neurociências pela USP e pós-doutor pela UNIFESP e pela Universidade da Pensilvânia (EUA). Referência em manejos terapêuticos relacionados à saúde mental e à qualidade de vida, foi pioneiro em pesquisas sobre os efeitos neurobiológicos da psicoterapia com métodos de neuroimagem. Suas contribuições sobre os mecanismos de superação traumática, sobre a integração da espiritualidade na prática clínica e as experiências mediúnicas, publicadas em respeitados periódicos científicos, impactaram a comunidade acadêmica, inclusive internacional. Autor do livro Razão & prática: olhares terapêuticos sobre o significado e o uso das palavras,Julio fala ao Correio sobre os avanços dos estudos da neurociências e sobre recursos terapêuticos para uma existência com mais equilíbrio.

 

 

 

Como as neurociências auxiliam a compreensão da atuação dos nossos sentimentos no nosso corpo físico? 

 

 As neurociências têm trazido avanços significativos na compreensão de como nossos pensamentos, sentimentos e emoções são mediados pelo cérebro, que ‘informa’ nossos corpos sobre como proceder. As cascatas de reações fisiológicas são disparadas a partir de nossas percepções sobre como nos relacionamos com o mundo exterior e interior. Quando pessoas com transtornos ansiosos percebem a proximidade com um agente fóbico, os circuitos neurais associados à amígdala comunicam com o sistema nervoso autônomo, que responde de imediato, acelerando os ritmos cardíacos e respiratórios em descargas noradrenérgicas, configurando um estado de prontidão para ‘luta ou fuga’ em relação ao suposto agressor, como se o indivíduo estivesse próximo à iminência de morte. A continuidade de níveis elevados de estresse e ansiedade pode aumentar a produção de cortisol e causar efeitos prejudiciais sobre o sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a várias doenças. Tal excesso de cortisol se torna neurotóxico, isto é, pode danificar os neurônios, especialmente dos circuitos hipocampais, prejudicando a memória e o aprendizado.

 

Por que e como a qualidade das nossas emoções interfere no funcionamento dos nossos neurônios?

 

 

Nossos sentimentos estão intimamente ligados à liberação de neurotransmissores e hormônios. Experiências emocionais positivas, como o amor e o contentamento, estimulam a liberação de oxitocina, dopamina e serotonina, que promovem sensações de bem-estar, vinculação social e pertencimento, contribuindo para a saúde geral. Estudos indicam que estados emocionais negativos recorrentes, como o medo, a raiva e aversões, podem aumentar os níveis de marcadores inflamatórios no sangue, impactando o adoecimento, às vezes com severidade. A inflamação crônica pode prejudicar a comunicação neuronal e está ligada a doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. Por isso, além da psicoterapia, recomendam-se práticas que ‘tranquilizam’ o sistema nervoso central, como a empatia, o perdão, a oração, a gratidão, a tranquilidade, a meditação e a segurança, que estão associadas à redução da inflamação, à melhora da saúde e da qualidade de vida.

 

 

Em termos espirituais, qual o papel do autoconhecimento para uma vida mais saudável?

 

 

Ao reconhecer e compreender nossos pensamentos, emoções e comportamentos ofertamos a nós mesmos a preciosa oportunidade de escolhermos conscientemente por caminhos saudáveis, em vez de atuarmos com padrões inconscientes de comportamentos. Muitas dinâmicas de comportamentos patológicos foram aprendidas em situações específicas do passado. Serviram de alguma maneira para garantir a sobrevivência. Ao identificarmos as origens desses padrões negativos, podemos nos desidentificar do passado e fortalecer com exercícios terapêuticos diários os comportamentos alinhados à nossa evolução pessoal e espiritual. Esse processo de autoconhecimento, transformação íntima e comportamental promove naturalmente a saúde e o bem-estar longevos. Além disso, o autoconhecimento nos aproxima de nossos planejamentos espirituais para a presente encarnação e de nossa verdadeira essência para vivermos com propósitos autênticos e significativos.

 

A mudança de nossas atitudes, então, pode reformular a plasticidade do nosso cérebro, curando-nos de transtornos mentais, como depressão, ansiedade e fobias?

 

 

Sim, a plasticidade neural é diretamente influenciada por nossas s, aprendizados, atitudes mentais e consequentes comportamentos. Estamos todos em processos de evolução espiritual por meio das vidas sucessivas. Nossos cérebros que medeiam as experiências como encarnados possuem a notável e divina capacidade de reorganização conforme nossas necessidades evolutivas, que chamamos de neuroplasticidade. Temos observado que as mudanças de nossas percepções, compreensões e atitudes relacionadas ao trauma por meio da psicoterapia remodelaram circuitos neurais associados à dor emocional e promoveram novos arranjos sinápticos e plasticidades correlacionados ao bem-estar. Vale lembrar que um dos principais fatores de resiliência se relaciona com a busca de significado e aprendizados decorrentes das adversidades e dores que todos enfrentamos. Assim como esse, outros fatores de manejo e superação de transtornos ansiosos e depressivos estão embutidos em nossa perspectiva de aprendizado para uma existência significativamente melhor, que também influencia os próximos mais próximos e distantes.

 

Nesses trinta anos de clínica em psicoterapia, o que você descobriu em relação à superação dos conflitos emocionais, no que se refere à interação corpo-mente?

 

A intrínseca relação entre mente, corpo e espírito é uma realidade a ser considerada nos processos terapêuticos; caso contrário não haverá a construção do aprendizado por completo, mas a fresta para reincidência do sofrimento. Observamos melhoras significativas na percepção e na vibração espiritual ao reestruturarmos cognitivamente os padrões de pensamento disfuncionais que geravam sintomas de diversas magnitudes. O conhecimento claro e o cultivo das virtudes têm uma relação importante com os processos de aprendizados necessários à dissolução das dores emocionais.

 

 

É sobre isso que você fala em seu novo livro?

 

 

Sim. No livro, apresento a origem etimológica das 26 palavras mais utilizadas em psicoterapias bem-sucedidas que indicam caminhos para se viver melhor. Procurei também abordar sobre as falsas crenças a respeito da competitividade e de outros fatores patogênicos com dados históricos e estudos antropológicos sobre os reais fatores que impactaram positivamente a humanidade. E falo sobre as virtudes. Elas estão em forma de aplicabilidade prática associada à saúde longeva.

 

Como as neurociências auxiliam a compreensão da atuação dos nossos sentimentos no nosso corpo físico? 

 

As neurociências têm trazido avanços significativos na compreensão de como nossos pensamentos, sentimentos e emoções são mediados pelo cérebro, que ‘informa’ nossos corpos sobre como proceder. As cascatas de reações fisiológicas são disparadas a partir de nossas percepções sobre como nos relacionamos com o mundo exterior e interior. Quando pessoas com transtornos ansiosos percebem a proximidade com um agente fóbico, os circuitos neurais associados à amígdala comunicam com o sistema nervoso autônomo, que responde de imediato, acelerando os ritmos cardíacos e respiratórios em descargas noradrenérgicas, configurando um estado de prontidão para ‘luta ou fuga’ em relação ao suposto agressor, como se o indivíduo estivesse próximo à iminência de morte. A continuidade de níveis elevados de estresse e ansiedade pode aumentar a produção de cortisol e causar efeitos prejudiciais sobre o sistema imunológico, aumentando a suscetibilidade a várias doenças. Tal excesso de cortisol se torna neurotóxico, isto é, pode danificar os neurônios, especialmente dos circuitos hipocampais, prejudicando a memória e o aprendizado.

 

Uma das palavras que você analisa no livro é “resiliência”. Silenciar aumenta o peso dos sofrimentos?

 

 Sim, a tentativa de silenciar a dor ao longo do tempo tende a aumentar a dimensão dos sofrimentos. Na maioria das vezes, leva ao isolamento, à solidão, à desesperança. A ausência da expressão e validação verbal podem amplificar ainda mais o sofrimento, dificultando o acesso à resiliência. A repressão das emoções pode levar a um acúmulo de tensões, assim como ao desenvolvimento de sintomas, como dores crônicas, fibromialgia, distúrbios do sono e até mesmo transtornos depressivos e ansiosos. A resiliência envolve a capacidade de reconhecer, verbalizar, enfrentar, processar e integrar as experiências dolorosas, permitindo que elas se transformem em aprendizados e crescimento saudáveis. Essa possibilidade é facilitada pela expressão verbal. A verbalização e o processamento das emoções reduzem a ativação da amígdala (área do cérebro associada ao medo) e aumenta a atividade no córtex pré-frontal, correlacionado à categorização da experiência e a regulação emocional.

 

Qual o papel da vontade e do esforço do espírito para superar culpas ou eventos traumáticos?

 

Superar culpas e eventos traumáticos não é um caminho fácil, porque envolve o enfrentamento de memórias dolorosas para reconstrução da narrativa pessoal de maneira que faça realmente sentido. A determinação e o empenho pessoal são fundamentais ao crescimento após experiências difíceis. A disposição de olhar para dentro de si mesmo, confrontar os sentimentos dolorosos e tomar ações que promovam a transformação é um ato do coração, isto é, envolve coragem. O desejo e a intenção clara de promover mudanças destacam a energia necessária para a jornada de superação, que envolve um compromisso responsável com os cuidados pessoais para alcance do bem-estar.

 

O que há de novo nos estudos em neurociências e inteligência artificial? Seria possível reproduzir a consciência humana com os conhecimentos que a ciência reúne hoje? 

 

Considero que dissecar e reproduzir o irretorquível número de variáveis (personalidade, temperamento, emoções, representação e a articulação simbólica do conhecimento, inclinações idiossincráticas, coerência situacional, flexibilidade adaptativa, etc.) que compõem a identidade humana seja impossível. Muitas tentativas continuam, mas a engenharia computacional associada às neurociências não conseguiram criar o senso de individualidade carregado de emoções, temperamento, desejos e livre-arbítrio nos robôs de I.A., e que assim se tornariam supostas ‘criaturas’. A mais avançada complexidade computacional não contém os ingredientes da vida anímica, porque a consciência e seu funcionamento vão muito além das propriedades que obedecem aos princípios da física clássica. Lembramos que Penfield (1978), depois de seus estudos com estimulação elétrica do cérebro para mapear as funções corticais, advertiu que as redes neurais isoladamente não seriam capazes de produzir a consciência, afirmando: “A mente tem uma existência distinta do cérebro, embora esteja intimamente relacionada a ele. Não há local no córtex cerebral onde a estimulação elétrica fará o paciente decidir”. 

 

Em nosso estágio evolutivo, como podemos melhor aproveitar esta reencarnação com as descobertas apontadas pela neurociência?

 

Estudos populacionais sobre qualidade de vida mostraram que as pessoas com altos índices de cooperatividade, voluntariado, ao bem-estar de grupos e comunidades reportaram mais afetos positivos, bem-estar, felicidade e satisfação com a própria existência. As neurociências revelam que o bem-estar humano não é dirigido unicamente pelo resultado material, mas especialmente pela solidariedade, cooperação e bondade. Áreas do cérebro relacionadas ao contentamento, satisfação, são ativadas durante atitudes virtuosas, generosas, leais e de cooperação. Portanto, assim como os estudos sobre felicidade e qualidade de vida indicam, as neurociências evidenciam que “as pessoas que realmente se sentem bem, fazem o bem”.

 

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