Relato de Clarice, 44 anos, jornalista, casada e mãe de uma filha.
Eu tinha 16 anos quando meu pai cortou o próprio pescoço. Nenhuma carta. Nenhuma declaração. Nenhum adeus. Muitas fofocas. Numa cidade tão pequena como era Campo Grande em 1989 foi difícil conviver com o estigma de ser a filha do suicida com a mãe possivelmente adúltera. Lidar com a morte é terrivelmente angustiante, lento e dolorido. Entender o suicídio é pior ainda, e digo isso como alguém que passou 19 anos tentando. Deitei em muitos divãs, escrevi diários, experimentei bebidas e drogas. Amei, fui traída, traí, encontrei mais canalhas do que homens. Também tive fases de pas- sar todas as noites e madrugadas em festas, e outras de suprema entrega ao trabalho, mas nunca, jamais, esqueci aqueles dias que mudaram meu destino.
Uma das maiores dificuldades com a morte do meu pai foi aceitar a ausência da minha mãe. Um mês depois do enterro, ela disse que estava namorando outro homem. Em 3 meses tínhamos uma nova casa, um novo cachorro, dois novos carros e um novo cara na nossa vida.
Doía saber que meu pai amou demais minha mãe a ponto de nos deixar para trás, mas não havia volta. Eu poderia ter feito a mesma coisa que o meu pai. Também tive depressão, e a explicação seria fácil pra todo mundo.
Um dia acordei e decidi tratar o trauma com ajuda especializada. Além da psicoterapia passei a tomar remédios acompanhada por um neurologista para tratar meu transtorno de humor, e voltei a praticar exercícios. Com a vida mais organizada, acabei me apaixonando por um cara sensacional e juntos tivemos a mais linda menina deste planeta.
Eu que acreditei que famílias eram coisa do passado, esquisitas, mafiosas, repugnantes, hoje mantenho com amor a minha pequena turma reunida. Sou capaz de qualquer coisa pelas duas pessoas que tanto amo.
Ele, meu pai, está sempre por perto, principalmente nos momentos de alegria, quando meu desejo de partilhar a felicidade fica do tamanho do universo. Sim, eu superei. Eu achei que eu o odiava, mas estava enganada… Eu o amo até na ausência.