Desistir é uma opção válida ou é para continuarmos sempre tentando o que queremos?
Vivemos atualmente sob fortes pressões e influências de consumo em um contexto cultural árido de significados para o sentido da vida. As novas tecnologias de entretenimento e a comercialização acelerada dos bens materiais disparam excitação, euforia e ansiedade, que ensombram a consciência dos valores essenciais à vidaem harmonia. Novas“necessidades” são artificialmente criadas a cada dia, imbuídas da falsa promessa de felicidade. A cultura contemporânea do descartável incentiva diuturnamente comportamentos como a pressa, a praticidade e a obtenção imediata dos bens que, supostamente, trariam conforto e aplacariam a angústia do vazio, assim como a ausência de sentido para a existência. Os relacionamentos interpessoais são igualmente influenciados pela oferta dos meios ágeis de comunicação, que favorecem interface superficial com grande número de pessoas (redes de relacionamento via internet), incitando contatos por interesse em vantagens imediatas e relações também descartáveis. Pessoas “coisificam-se” sucessivamente como produtos, ao passo que os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. Em meio ao mar da inconsciência e a pressa da vida diária é fundamental buscar um sentido maior à existência. A consciência ampliada nesse sentido é o berço da maior e mais poderosa fonte de motivação.
Se o objetivo estiver de fato alinhado ao sentido genuíno da vida, o mesmo será alcançado mais cedo ou mais tarde. A força do inconsciente é expressiva e por muitas vezes o objetivo postulado envolve uma intenção de reconhecimento do entorno ou satisfação das expectativas de um ente querido. Traumas relacionados à aridez afetiva, abandono ou desprezo podem deixar marcas inconscientes que influenciam buscas de objetivos às vezes inexeqüíveis. As pessoas que superam esses traumas em psicoterapia compreendem que elas podem preencher o vazio afetivo como provedoras do próprio bem-estar.
A melhora consistente da qualidade de vida das pessoas que buscaram a psicoterapia por sofrerem demasiadamente ao perseguirem seus objetivos e mudaram seus caminhos satisfatoriamente envolve geralmente os seguintes fatores: desenvolvimento de novos interesses e objetivos, apreciação e valorização da vida, melhor relação familiar e interpessoal e a descoberta de força e recursos pessoais para superação de adversidades.
Dá para saber uma hora que é melhor fazer uma mudança de planos para ter sucesso na vida (ou pelo menos parar de se frustrar)?
O indicador de que já é hora de mudar os planos é simples: quando o sofrimento é maior que a motivação de atingir o objetivo. A curiosa origem da palavra trabalho (do latim tripalium) refere-se a um instrumento romano de tortura, um tripé cravado no chão, onde eram supliciados os escravos. Por causa de sua ligação com a tortura, por meio desse instrumento, a palavra trabalho, consciente ou inconscientemente, tem sido relacionada com padecimento e sofrimento. Tenho me empenhado com meus pacientes na desconstrução dessa falsa crença e no fortalecimento da associação entre objetivos profissionais e felicidade. O estado subjetivo chamado de felicidade abrange um conjunto dinâmico de vivências, como: momentos de prazer fugazes na vida diária (surpresa agradável, prazer sensorial ao tomar banho, almoçar, ouvir uma música, etc.); satisfação com a vida, prazer mais duradouro (envolvendo o relacionamento diário com família, trabalho e amigos) e satisfação com a vida, bem-estar perene (compreendendo estilo de vida, gratidão, motivação e contentamento íntimo, propósito e significado amplos para a vida). Portanto, são várias as possíveis manifestações humanas de afeto positivo. Em linha com os achados epidemiológicos sobre felicidade, estudos com neuroimagem funcional mostram que o bem-estar humano não é dirigido unicamente pelo resultado material, mas especialmente pela solidariedade, cooperação, caridade e justiça. A angústia e o sofrimento contínuo são os principais termômetros indicadores de que já é hora de fazer algo novo com um significado maior para a existência. A temperança e o tempo para um mergulho íntimo são necessários na busca do significado mais amplo para o viver, e a psicoterapia tem ajudado muitas pessoas dispostas a mudarem suas vidas para melhor.
Como tirar uma coisa positiva de desistir de algo que você planejava há tempos?
Equívocos e acertos fazem parte do processo natural de aprendizado que permeia todas as fases do desenvolvimento humano. Todos nós erramos e acertamos no passado e isso continuará acontecendo ao longo da vida. Contudo, os erros e as derrotas podem assumir uma dimensão subjetiva tão expressiva a ponto de desencadear isolamento social, distorções depreciativas da auto-imagem, enfermidades e/ou transtornos como a depressão. O sofrimento decorrente das derrotas depende em boa parte do processamento perceptual e dos diálogos internos que o indivíduo alimenta, e essa “leitura” por muitas vezes se torna um marco, saudável ou não, que influencia as próximas experiências de vida. Relacionei uma síntese dos exemplos práticos de pessoas que cresceram e se desenvolveram psicologicamente com base nos aprendizados adquiridos em suas experiências dolorosas relacionadas à derrota. Estabelecer uma aliança de aprendizado com as derrotas tem despertado muitas pessoas para buscas e reflexões que configuram qualidades de vida geralmente superiores àquelas vivenciadas antes da desistência dos objetivos previamente planejados. Se você sofre com seus objetivos não atingidos, pense a respeito de algumas boas razões para aprender com as desistências ou supostas derrotas.
- Aceitar que você insistiu ou errou em sua opção não é uma fraqueza. Ao contrário, é um ato de coragem a favor da integração (do latin integrare: tornar-se inteiro) que pode fortalecer o caráter e a disposição para seguir em frente em busca de um sentido mais verdadeiro para sua vida.
- O princípio da impermanência (tudo se encontra em movimento e transformação) se mostra em todo o Universo, do micro ao macrocosmo. Ainda que o sofrimento da derrota pareça permanente, lembre-se que esse estado também será passageiro. Pensar sobre novos caminhos para superação e focar o seu investimento nessas possibilidades abreviarão a sua travessia pelo sofrimento.
- Insistir e não alcançar o objetivo envolve um longo processo permeado por aquisições de conhecimentos que beneficiarão também outros domínios da vida. Assim, a derrota pode ser apenas parte de uma história de superação. Vale lembrar que a percepção é seletiva e influenciada pelas emoções (positivas ou negativas). Novas oportunidades surgirão especialmente quando você tiver olhos para enxergá-las.
- A disponibilidade ao aprendizado confere um estado de ânimo saudável e desarticula autovitimização, que só leva ao sofrimento. O que você diz para si e para os outros sobre o que ocorreu pode tanto aliviar como exacerbar o sofrimento. A fixação em diálogos internos do tipo “Isso é injusto” ou “Não poderia ter acontecido comigo” dificulta a recuperação e favorece a continuidade da dor. Assumir a responsabilidade em relação ao que você pode fazer agora traz de volta o controle para suas mãos e a libertação do passado.
- As neurociências mostram que lembrar compreende a reconstrução de informações coerentes por meio de fragmentos disponíveis de modo que o conjunto faça sentido. Assim, o passado é flexível e modifica-se com novas interpretações das recordações e reexplicações do que aconteceu. Se você buscar pelo menos um aprendizado (ou mais) advindo(s) da desistência o sentido da sua história modificará para melhor. O psiquismo é ágil e precisa de orientação para que tal agilidade esteja a favor do bem-estar.
- A superação de um sofrimento está diretamente relacionada ao que a Psicologia chama de Extinção: o indivíduo estabelece uma nova hierarquia de respostas num processo ativo de aprendizado. Assim, as novas associações construídas substituem aquelas que geravam o sofrimento decorrente da desistência.
- Criar alianças de aprendizado com as adversidades predispõe e favorece a superação psicológica. De fato, as dificuldades perdem força a medida que o aprendizado por elas trazido for absorvido. O repertório de aprendizados decorrentes de uma aparente derrota pode trazer uma qualidade de vida superior a que você tinha antes mesmo da derrota acontecer.
- A maturidade se relaciona indiretamente com o passar do tempo e diretamente com o aprendizado que as experiências trouxeram. Conforme traduz o provérbio oriental “Saber e não fazer, ainda não é saber”, as lições trazidas pelos objetivos não alcançados tornam o indivíduo mais maduro e portanto, com mais recursos para contornar as adversidades futuras.
- A opinião de que se pode aprender e crescer a partir das experiências positivas e negativas influencia os resultados dos eventos e favorece a motivação de encontrar sentido na vida diária. As desistências, quando bem elaboradas, favorecem a geração de novos objetivos e estratégias para concretizá-los.
- Nossos estudos com neuroimagem mostraram o que acontece no cérebro das pessoas que aprenderam com seus sofrimentos. Novas classificações e traços de memória se formam no cérebro, substituindo as conexões neurais anteriores envolvidas com o sofrimento. Essa evidência reforça a importância de aprender com a dificuldade em vez de sucumbir a ela.
Entrevista com o Dr. Julio Peres à Revista Gloss.