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Mediunidade

1) Um pouco de história. De maneira geral, como o fenômeno mediúnico foi visto pelas ciências médicas a partir do século 19?

Todos os que estão familiarizados com as histórias da Psicologia e da Psiquiatria reconhecem a importância de ampla variedade de fenômenos específicos para o desenvolvimento de conceitos de mente e saúde mental. Neste sentido, a histeria, a dupla personalidade, a hipnose e a mediunidade figuram como exemplos durante o século XIX. Os fenômenos mediúnicos, tais como os transes e as manifestações verbais ou escritas atribuídos a espíritos dos mortos, contribuíram para o desenvolvimento de conceitos como o de mente subconsciente, processos de dissociação e concepções teóricas relacionadas à psicopatologia durante os séculos XIX e XX. A partir de investigações controladas, William James e Frederic Myers confirmaram a veracidade de algumas mensagens mediúnicas e consideraram que a memória não se manifesta durante o transe de uma personalidade mediúnica bem desenvolvida. Contudo, é necessário que a mediunidade seja mais conhecida do que é atualmente na historiografia da Psicologia e da Psiquiatria. Aqueles de nós interessados na Psicologia e na Psiquiatria não devem negligenciar os médiuns em seus estudos para o desenvolvimento dessas disciplinas.

2) A utilização das neurociências no estudo da mediunidade modificaram essa visão?
As neurociências podem contribuir à compreensão da natureza humana também a partir de estudos sobre a mediunidade alinhados a busca da compreensão da consciência humana. A visão do homem e a natureza que o constitui são esteios que norteiam as intervenções terapêuticas dos profissionais da Saúde. Não há como se falar em Psicologia ou Psiquiatria sem abordar a personalidade e a expressão da consciência, e esse tema não pode ser deixado à margem da prática clínica. As comunicações mediúnicas pressupõem a continuidade da vida após a morte e a existência do espírito. Conforme o World Values Survey, tais crenças são predominantes na população mundial e esse dado demográfico por si, já justifica a continuidade das pesquisas nesse campo relacionado a manifestações espirituais. Por outro lado, discute-se quais seriam as consequências da “biologização” da experiência humana a partir de algumas perguntas como: a responsabilidade pessoal sobre os próprios atos (livre-arbítrio) poderá ser atribuída apenas às correlações neurobiológicas dos processos cerebrais? Quem deveria, então, ser considerado pelos atos: o cérebro ou o indivíduo? Devemos tratar os transtornos mentais, simplesmente, como doenças do cérebro? As noções de autonomia e identidade das pessoas sobreviveriam com a visão reducionista? Portanto, as pesquisas devem continuar. Investigações neurocientíficas sobre as experiências espirituais podem auxiliar na compreensão da relação mente-corpo. O esclarecimento dos fatores constituintes da natureza humana, em especial da consciência e da personalidade, são objetos de estudo justificáveis e imprescindíveis aos profissionais que se ocupam de tratar a dor psíquica em suas expressões.

3) A noção de que é possível mapear áreas do cérebro responsáveis pela crença religiosa (o tal “God Spot”) se mostrou correta?

O “Ponto de Deus” foi uma teoria reducionista alinhada a “biologização” da experiência humana. Na última década observamos um interesse crescente na compreensão dos mecanismos cerebrais que medeiam experiências transcendentais, místicas e religiosas caracterizadas por estados expandidos de consciência. Vários estudos com neuroimagem funcional mostraram que diversas regiões e sistemas cerebrais mediaram os diferentes aspectos da experiência religiosa/mística. Esta conclusão não foi uma surpresa, dado que estas experiências são complexas e multidimensionais, isto é, implicam em mudanças na percepção (como a imagem mental visual), na cognição (por exemplo, as representações do Eu), e na emoção (a paz, alegria e amor incondicional). Assim, a teoria sobre “o ponto de Deus” – postulava que um ponto no cérebro seria responsável pela criação da experiência com o divino – foi derrubada com os estudos recentes em neuroimagem. Além disso, enfatizo que elucidar os circuitos neurais envolvidos nas experiências subjetivas como a prece, o contato com Deus ou a vivência mística não diminui e tampouco deprecia seus significados e valores.

4) Que pesquisas utilizando as ferramentas das neurociências no estudo da consciência merecem destaque?

Para ser sintético, menciono apenas tres entre muitas outras. Dr Sam Parnia coordena o estudo multicêntrico nomeado The Human Consciousness Project, que compreende 25 hospitais europeus e norte-americanos e espera monitorar 1.500 sobreviventes de parada cardíaca. O estudo tem como objetivo investigar relação entre a mente e o cérebro durante a morte clínica e verificar, confirmar ou desconfirmar de maneira controlada as percepções que os sobreviventes de paradas cardíacas relatam. São utilizadas tecnologias para o estudo da consciência e da atividade cerebral durante a parada cardíaca por meio não invasivo (monitores que medem variações nos níveis de oxigênio e proporcionam uma indicação do fluxo sanguíneo cerebral). Outra linha de pesquisa conduzida pelo Dr Mario Beauregard monitora o cérebro durante um tipo de intervenção cirúrgica que requer um estado clinicamente morto do paciente: a temperatura corporal reduzida a 17 °C, sem batimento cardíaco e respiração, e o sangue drenado de sua cabeça. O interessante caso de Pam Reynolds, que aparentemente sofreu uma profunda experiência transcendental enquanto foi operada de um aneurisma da artéria basilar, merece atenção. Reynolds estava sob monitoramento médico durante toda a operação e após a cirurgia fez observações sobre o procedimento que mais tarde foram confirmadas pela equipe médica como surpreendentemente precisas. Entre outros, o caso de Pam Reynolds desafiam a doutrina materialista em relação ao problema mente-cérebro, sugerindo que os processos mentais podem ser experimentados no momento em que as funções do cérebro aparentemente não estão ativas. A acurácia de alguns relatos como este, sugere que experiências transcendentais não são necessariamente ilusões criadas pelo cérebro. Pesquisas sobre Visões no Leito de Morte conduzidas pelo Dr Peter Fenwick também merecem atenção. Em um dos estudos, informações coletadas de 38 cuidadores formais (enfermeiros e médicos), com mais de uma década de experiência com pacientes terminais e companhamento de aproximadamente 200 pacientes falecidos mostraram que: 79% dos cuidadores relataram que as visões no leito de morte não poderiam ser atribuídas a alterações químicas no cérebro, à medicação ou febre e 68% que as visões no leito de morte eram eventos de ordem espiritual.

5) As neurociências já são capazes de dizer o que se passa no cérebro de um indivíduo sob transe mediúnico?

Ainda não, mas em breve saberemos. O Brasil é um país rico para o estudo da mediunidade e temos o privilégio de encontrar médiuns consistentes como voluntários. Estamos construindo essa linha de pesquisa com estudos cooperativos (Universidade Pensilvânia nos EUA, Universidade de Aachen na Alemanha) envolvendo neuroimagem funcional e mediunidade.

6) Apesar de ser um neurocientista, o Sr. se opõe à noção, atualmente tão em voga, de que a mente possa ser totalmente explicada como produto do cérebro?

Penso como psicólogo clínico e neurocientista que a Psicologia não pode considerar-se abrangente se não levar em conta a diversidade das experiências humanas. Por outro lado, uma das mais desafiadoras questões que a Ciência enfrenta continua sendo a compreensão da natureza da personalidade e da mente, bem como a sua relação com o cérebro. Apesar do extremo interesse justificado em tal área de investigação, ainda não foi encontrado um mecanismo biológico plausível para explicar a forma como o cérebro pode dar origem à mente. Não podemos negligenciar as implicações de uma larga escala de fenômenos psicológicos importantes, que incluem as influências psicofisiológicas (psicossomática, placebo, transtornos dissociativos, mudanças neurofisiológicas induzidas por hipnose, influência mental à distância), memória, automatismo mental (identidade, escrita automática/psicografia, estados de transe, experiências mediúnicas), fenômenos de quase-morte e experiências similares (experiência fora do corpo, sonhos vívidos, aparições e visões lúcidas no leito de morte) e experiências místicas. À luz das evidências disponíveis, considerando a revisão detalhada sem limitar a análise apenas aos dados contemporâneos da neurociência cognitiva, as principais teorias atuais a respeito do complexo mente-corpo são seriamente falhas e incapazes de explicar uma larga escala de experiências humanas. O caráter sutil e não local da consciência dificulta sua redução a uma base exclusivamente física. Nos últimos anos, vários estudos independentes levantaram a possibilidade de testar a hipótese de a consciência existir a despeito do funcionamento do cérebro, investigando a mente humana durante parada cardíaca. Atividades cognitivas envolvem a dinâmica funcional global do cérebro com caro dispêndio energético (glicose, oxigênio, respostas hemodinâmicas, neuromodulação, etc.). A preservação da lucidez, de processos cognitivos de raciocínio e de formação de memórias pormenorizadas durante a parada cardíaca sem estímulos de reanimação, é um paradoxo científico: os estudos neurofisiológicos durante a parada cardíaca indicam a interrupção do fluxo sanguíneo cerebral e das funções cerebrais e, portanto, seria esperada ausência da manifestação da mente e de seus processos cognitivos. Vale lembrar que a ciência ainda não esclareceu conclusivamente o mosaico de variáveis e suas participações interativas na constituição da singularidade de nossas identidades. Além dos fatores genéticos e ambientais, outros devem constituir a personalidade e muito precisamos estudar a respeito. Por exemplo, desafiando a “esperada” similaridade dos traços de personalidade os gêmeos diencefálicos – duas cabeças em um só corpo – e siameses que vivenciam as mesmas experiências no ambiente e trazem bagagens genéticas idênticas (veja as irmãs as americanas Abigail e Brittany Hensel e as irmãs iranianas Laleh e Ladan Bijani, entre outros exemplos), têm personalidades (gostos, temperamentos, opiniões, desejos) demasiadamente distintas desde a primeira infância. Portanto, deve-se ter cautela com as teorias extremadas que consideram mente, intencionalidade, consciência e personalidade como subprodutos cerebrais.

Entrevista do Dr. Julio Peres concedida à  a Fausto Salvadori Filho – Repórter Galileu (05/08/11)

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