O que diferencia o medo de voar de avião de uma fobia? Como essa fobia pode afetar quem a possui e atrapalhar sua rotina?
O medo de viajar de avião geralmente não impede o indivíduo de fazer suas viagens, a despeito do desconforto. Contudo, o medo pode às vezes evoluir para uma fobia, considerada como um Transtorno de Ansiedade, cuja causa é multifatorial. Fatores genéticos, neuroquímicos, socioculturais, tipo de personalidade e eventos de vida como traumas psicológicos estão envolvidos no surgimento das Fobias. As viagens de avião são freqüentes e necessárias no mundo atual pelas oportunidades ao desenvolvimento profissional, cultural e de lazer oferecidas por esse seguro meio de transporte. Muitas pessoas perdem oportunidades de emprego e de lazer com a família pela limitação que a fobia de viajar de avião impõe. Outras pessoas com a mesma fobia se desgastam com sofrimento expressivo durante suas viagens de rotina abortando por vezes a prosperidade profissional. Várias pessoas buscam o tratamento da fobia de viajar de avião quando percebem que estão prejudicando a si mesmos com o uso abusivo do álcool ou de tranqüilizantes, ou a família, também privada de viajar.
Por que apesar de números e pesquisas mostrarem que o avião é um dos veículos mais seguros, as pessoas continuam tendo tanto medo de voar?
As fobias se desenvolvem geralmente por processamentos emocionais subjetivos que não são necessariamente “racionais”. Todos temos a capacidade de generalizar, e sem ela não sobreviveríamos. Já superamos inúmeros desafios na infância, adolescência e idade adulta, como dormir em quarto separado dos pais, fazer provas difíceis na escola ou faculdade, aprender a andar de bicicleta ou dirigir, confrontar uma situação desconhecida, etc. A faculdade da generalização permite a construção de aprendizados associativos ao longo desenvolvimento humano (por exemplo, se consegui subir um degrau da escada, conseguirei subir o segundo, além de vencer outros desafios similares). A mesma generalização atua nas fobias decorrentes de eventos em que o indivíduo experimentou expressivo medo, como um sistema que visa preservar a sobrevivência. Nesse sentido as emoções superpõem à razão e as áreas límbicas são mais atuantes que as áreas envolvidas em processos de racionalização. Contudo, não somos reféns de nosso cérebro emocional e podemos modificar esse estado de temor, como já evidenciamos em nossos estudos com neuroimagem (Psychological Medicine, 2007 e Journal of Psychiatric Research, 2010) que demonstraram os efeitos neurobiológicos da superação durante a psicoterapia. Os diálogos internos (a maneira que processamos os eventos) podem gerar a neuroquímica da saúde, ou do sofrimento. O psiquismo é muito ágil, mas precisa de orientação para trabalhar a nosso favor.
Que influência as grandes tragédias com aviões têm sobre o medo das pessoas?
A influência dos noticiários sobre as grandes tragédias com aviões pode ser expressiva porque a percepção das informações que nos chegam é imensamente projetiva, isto é: o funcionamento do cérebro nos permite ver ou perceber o que conhecemos e acreditamos ser possível, e assim tendemos a nos identificar com o que percebemos. Em outras palavras: nossa percepção do mundo busca uma reflexão no espelho de nossas memórias. Fomos condicionados a acreditar que o mundo externo é mais real que o interno. Estudos contemporâneos apontam outras perspectivas. O que acontece dentro de nós é que vai criar o que “acontece fora” em nossas relações com o mundo. As pessoa com experiências prévias de temor relacionado a morte, e muito de nós as temos, podem condensar as informações de tragédias ao próprio repertório e agravarem o medo de morrer. Os neurônios-espelho, descobertos recentemente pela Neurociência, participam ativamente desse processo em que experimentamos a empatia, reconhecemos os referenciais de outros indivíduos e os fundimos às nossas vivências, favorecendo a geração de comportamentos similares aos que observamos. Contudo, as grandes tragédias não influenciam a todos e o diferencial é a identificação ou não com o evento observado.
Existe alguma relação entre memória e medo?
A memória apresenta o curioso fenômeno de estado-dependência, isto é, podemos nos recordar de experiências com a apresentação de “dicas” alinhadas a esses aprendizados. Por isso, frequentemente durante uma refeição num restaurante, outros restaurantes e refeições são lembrados. Ao sentir um perfume específico, como o de um bolo que a avó fazia na infância, as memórias daquele período vêm à tona. O mesmo acontece, porém de maneira mais intensa, com indivíduos traumatizados: lugares, circunstâncias, sensações etc., associados ao trauma podem disparar a memória do evento e mecanismos de alerta como se a situação traumática estivesse acontecendo ou por acontecer. Muitas vezes, tais dicas se tornam distantes do que de fato ocorreu e, mesmo assim, com e generalização subjetiva e inconsciente, as memórias do trauma são disparadas. Vale exemplificar: durante a psicoterapia observamos que um paciente sofrera uma queda traumática do muro de sua casa aos 12 anos de idade, com fraturas expostas e 2 meses penosos de hospitalização. Uma sensação similar de “frio na barriga” foi experimentada aos 17 anos durante um vôo e inconscientemente a associação de perigo foi estabelecida com as viagens de avião. Pedi então que o paciente construísse uma nova associação com o que ele chamava de frio na barriga, agora agradável, por meio de saltos cada vez mais altos e divertidos numa cama elástica profissional. Em seguida, o paciente brincou com sua esposa e filho em montanhas russas e assim, pouco a pouco, o “frio na barriga” foi associado ao bem-estar e divertimento. Além de superar o seu medo de viajar de avião, hoje aos 42 anos ele se diverte em ocasiões de turbulência nos vôos com “frio na barriga”. Frequentemente, pessoas fóbicas que não localizam a lembrança do evento desencadeador. A identificação de tais processos associativos durante a psicoterapia nem sempre é imediata, especialmente quando estão envolvidas memórias complexas que abrangem outras memórias e, portanto, outras redes associativas.
É possível aprender a ser corajoso e superar o medo de viajar de avião?
O diálogo entre o medo e a coragem está presente em muitas expressões artísticas, como pinturas, esculturas e peças literárias, que retratam assertivamente a coexistência entre essas duas aparentes polaridades. A despeito da crença de que uma condição exclui a outra prevalecer ao senso comum, a coragem envolve vários aspectos e não é um pacote fechado que alguns tem e outros, assim como o medo. Na prática, se você tem medo, isso não significa que você não tenha coragem, ou vice-versa. Coragem tem em sua raiz o significado “ato do coração”. Considero que ser corajoso inclui responsabilidade e integridade alinhadas ao desenvolvimento e à prosperidade pessoal; envolve estar consciente das ameaças e resolver problemas usando discernimento e capacidades para atender as necessidades pessoais e também do entorno. A coragem sem o medo pode ser desastrosa e mal sucedida. Portanto, o aprendizado e o cultivo da coragem podem ocorrer a partir do controle gradativo das variáveis temerosas, do conhecimento real das motivações pessoais e do porquê de enfrentar a adversidade. O conhecimento, a prudência, o ânimo e a paciência para o enfrentamento bem-sucedido são importantes preditivos de atos do coração, ou corajosos.
Quando é preciso procurar tratamento?
Deve-se recorrer à psicoterapia quando o sofrimento for expressivo a ponto de limitar a vida diária, ou provocar outros problemas de ordem familiar e/ou profissional.
Como a psicoterapia pode ajudar?
O temor de viajar de avião pode ter distintas origens. É preciso investigar a raiz do medo, para que o processo terapêutico seja eficaz. A psicoterapia busca dissecar e trabalhar as associações estabelecidas entre eventos traumáticos e os respectivos sistemas de crenças que geram os comportamentos fóbicos. Os efeitos terapêuticos podem ser, em boa parte, decorrentes do “aprendizado de extinção”, que estabelece novas e saudáveis respostas mediante ao estimulo que causava medo. É um processo ativo de aprendizado pelo qual o indivíduo organiza sua cognição com experiências gradativas de enfrentamento consciente uma nova associação saudável em detrimento da anterior. A psicoterapia pode promover aprendizados e novas associações que refletem, muitas vezes, a extinção. As terapias baseadas na exposição (imaginária e in vivo) estão alinhadas aos mesmos princípios. Fernando Sabino nos ensina poeticamente o que é o aprendizado de extinção: Façamos da interrupção um caminho novo… Da queda, um passo de dança… Do medo, uma escada… Do sonho, uma ponte… Da procura, um encontro!
Acreditar em Deus ajuda?
Sim, acreditarem um Deusprovedor, que tudo assiste, ajuda, em especial quando ocorre o que chamamos de Entrega Religiosa Ativa (fazendo o que é possível quanto às responsabilidades pessoais e colocando o resto nas mãos de Deus). Crenças e práticas religiosas podem reduzir a sensação de perda do controle e de desamparo relacionadas ao medo, podem fornecer uma estrutura cognitiva capaz de diminuir o sofrimento e, ainda, fortalecer o indivíduo para o enfrentamento de suas dificuldades. Hoje, centenas de artigos científicos revelam o impacto positivo (na maioria das vezes) da espiritualidade e da religiosidade na saúde. Apenas 7% da população brasileira não têm religião e, portanto, muitas pessoas podem fortalecer sua confiança subjetiva (ou fé) baseada em suas crenças como um recurso adicional para superação do medo de viajar de avião.
Tem alguma dica para quem tem medo, mas precisa voar?
A auto-indução de relaxamento com foco na respiração tranqüila apoiada por pensamentos de superação (ex: Eu me sinto tranqüilo e seguro… Tudo está bem agora e assim continuará… Sou capaz e supero a mim mesmo…) também ajuda. A explicação é simples: quando hiperventilamos (respiração ofegante, ansiosa) provocamos alterações do oxigênio na corrente sanguínea, favorecendo progressiva confusão mental e como decorrência, exacerbação do medo. Por outro lado, quando mantemos a respiração tranqüila nos sentimos mais seguros, confiantes e com o controle preservado. Enfatizo também aos meus pacientes que nós construímos sobre o que temos e não sobre o que nos falta, e por isso, o processo terapêutico envolve o resgate das memórias de superação e auto-eficácia. Uma boa dica é resgatar o repertório de vitórias (conquistas de objetivos no campo familiar, profissional, escolar, esportivo, etc.) em outros períodos da vida. Tais lembranças podem mobilizar novas associações para o fortalecimento da auto-imagem corajosa e vencedora. Por exemplo, certa vez um paciente lembrou-se de como ele superou o medo de escuro na infância e a mesma estratégia o ajudou a superar o medo de viajar de avião: “enfrentei o escuro passo a passo, acendendo e apagando a luz do meu quarto. Eu me convenci que o meu quarto continuava em ordem quando apagava a luz, até que consegui dormir no escuro sentindo que tudo estava bem”. Consciente dessa estratégia bem sucedida, o paciente fez o mesmo para superar o medo de viajar de avião. Ele enfrentou o aeroporto, vôos curtos sem tranqüilizantes e gradativamente foi se expondo a vôos mais longos até que se convenceu que estava tudo bem. Chamamos esse processo de Dessensibilização (retirar a sensibilidade). Esse método favorece a diminuição gradativa da hipersensibilidade existente a uma condição fóbica por meio da exposição suave e contínua, que permite ao paciente fortalecer a percepção do controle e vitória sobre si mesmo.