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A natureza do trauma psicológico é imensamente subjetiva.

O psicólogo Julio Peres, especialista em superação, ressalta que as memórias traumáticas são prevalentes em muitos outros transtornos, como depressão, fobias específicas, pânico e ansiedade generalizada.

Os eventos traumáticos atingem grande parte da população e o mais surpreendente é que alguns estudos epidemiológicos revelam que a maioria das pessoas já passou ou passará por episódios potencialmente traumáticos. Sendo assim, como lidar com essas situações?

De acordo com Julio Peres, psicólogo clínico, doutor em Neurociências e Comportamento e especialista em superação traumática, “o trauma psicológico se caracteriza por um afluxo de excitações relativamente superior à capacidade do indivíduo de processar e elaborar esses conteúdos, que ficam dispersos em fragmentos sensoriais, emocionais e cognitivos, causando imenso sofrimento”.

Peres explica que é fundamental ter em mente que a natureza do trauma psicológico é imensamente subjetiva, indo além do fato em si. “O indivíduo vivencia o imponderável, o efeito surpresa, sem representações para signifi car o episódio ocorrido”, ressalta.

O psicólogo também se dedicou a estudos que investigaram os efeitos neurobiológicos da Psicoterapia através da neuroimagem funcional
(Psychological Medicine, 2007, e Journal of Psychiaric Research, 2011), além de ser pesquisador do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser) do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.

O  que   tragédias   ou   traumas   podem   trazer   à   mente   da   pessoa   a curto  e  longo  prazos?
Peres:   São inúmeros os tipos de eventos traumáticos que afetam grande parte da população. Estudos epidemiológicos revelam que a maioria de nós passou ou passará por episódios potencialmente traumáticos.  O trauma psicológico se caracteriza por um afluxo de excitações relativamente superior à capa- cidade do indivíduo de processar e elaborar esses conteúdos, que ficam dispersos em fragmentos sensoriais, emocionais e cognitivos, causando imenso sofrimento. Os principais traumas que observo em minha clínica são decorrentes de desajustes familiares, desamparo, acidentes, sequestro, violência, abuso sexual, enfermidades, traições, injustiças, conflitos interpessoais, perdas de entes queridos, entre outros. Contudo, o que pode ser um evento traumático para uma pessoa não necessariamente será para outra, e o despreparo em relação a essas representações subjetivas pode caracterizar o evento estressor como um trauma psico- lógico. Devemos nos lembrar que a natureza do trauma psicológico é imensamente subjetiva, indo além do fato em si. O  indivíduo vivencia o imponderável, o efeito   surpresa, sem representações e recursos para significar o episódio ocorrido.

Os  traumas  de  infância  sempre  ficam  até  a  fase  adulta?
Peres:    Os    traumas    psicológicos podem trazer diversos sintomas, especialmente divididos em dois grupos. Primeiro, reações de alerta, com expressões adrenérgicas, como se o risco do trauma estivesse por
acontecer a qualquer momento. Os sintomas mais frequentes são irritabilidade, insônia, medo contínuo, sensações de vulnerabilidade, picos de ansiedade, entre outras expressões de excitação neuroautonômica. Segundo, expressões dissociativas relacionadas à maior atividade do sistema parassimpático. O indivíduo manifesta imobilidade tônica, como se estivesse anestesiado, embota- mento afetivo, dificuldades de estabelecer vínculos, isolamento, tristeza, entre outros sintomas. A infância é um período especialmente delicado, com extrema vulnerabilidade ao trauma psicológico, porque a criança ainda não desenvolveu suas habilidades cognitivas para categorizar e classificar eventos emocionais e sensoriais. Tais traumas nessa fase, quando não tratados, reverberam na adolescência, na idade adulta e na terceira idade, enquanto as emoções e sensações dolorosas permanecerem como fragmentos dispersos sem representações para o que ocorreu.

Toda  a  dificuldade  em  lidar  com  o trauma   pode   ser   traduzida   como estresse  pós-traumático?
Peres:  Não.  Nem  todas  as  pessoas traumatizadas preenchem os critérios diagnósticos do transtorno de estresse pós-traumático.

O medo  é  essencialmente  causa  ou consequência  do  trauma?
Peres:  O  medo  figura  entre  as  cinco emoções básicas e pode ser saudável ou patológico. A maioria das pessoas traumatizadas não preenche os critérios de qualquer transtorno psiquiátrico, mas apresenta sintomas específicos também associados ao medo que  geram  imenso  sofrimento  e limitações diárias. Vale lembrar que as memórias traumáticas são prevalentes em muitos outros transtornos, como as fobias específicas, o pânico,  a ansiedade generalizada, a depressão, entre outros. A expressão saudável dessa emoção nos permite avaliar riscos de maneira adaptativa, protege-nos de situações   ameaçadoras e nos permite viver bem. Por outro lado, a  expressão patológica do  medo é decorrente de traumas psicológicos. As pessoas generalizam os eventos como se esses pudessem ser cópias ameaçadoras do trauma, sendo assim um mecanismo que visa a proteção, porém “desadaptativo” (não atualizado ao contexto presente), que, ao invés de ajudar, promove sofrimento.

Quando  se  fala  em  trauma, muitas pessoas    logo    associam    à    morte. e a relação da criança com esse evento na maioria das vezes não é    fácil.   o   que    responder    a    uma criança quando ela indaga para onde   vai   um   parente   querido   de- pois  de  morrer?
Peres:   É   muito   importante   que   o sistema de crenças da família seja respeitado e que a comunicação em relação à morte do ente querido para a criança tenha um caráter simples, claro e objetivo.

Como  trabalhar  a  questão  da  ausência  e  da  saudade  com  a  criança?
Peres: É importante favorecer as diversas representações desses sentimentos, através de desenhos, expressões artísticas, conversas, jogos e mesmo brincadeiras leves com as crianças, que perderam entes queridos. Os adultos não devem negar ou suprimir as expressões de saudade ou tristeza ou falta  da  criança  em  relação  ao ente querido. Ao contrário do que muitos adultos pensam, as crianças têm maior facilidade de processamento das informações relacionadas às mortes desde que as mesmas sejam coerentes entre os conteúdos verbais expressados e os sentimentos manifestos. Nesse sentido, as crianças poderão lidar com da- dos de realidade e significar a falta, ao invés de criar mecanismos ilusórios, ou de supressão dos sentimentos ou mesmo dissociaçãocaracterísticos do luto patológico.

Há crianças que querem saber quanto   tempo   ela   tem   para   ficar triste,   ou    seja,   ela    quer    saber quando  vai  poder  voltar  à  normalidade  da  vida?
Peres: Os adultos assim como as crianças não precisam ter pressa para que a tristeza passe. O luto saudável, também para as crianças, envolve o ponto de equilíbrio entre o atravessar a tristeza sem cultivá-la ou mesmo incentivá-la.

Caso    a    criança    demonstre    vontade de ter fotos da pessoa que morreu,   como    se    deve    proceder? uma  linha  de  pensamento  defende que  isso  não  é  bom, pois  dificulta  a superação   da   perda.  no   entanto, outra  corrente  acredita  que  isso é  bom,  pois,  de  certa  forma,  tranquiliza    a    criança    e    a    faz    ficar mais  próxima  da  pessoa  que  perdeu. qual  sua  posição?
Peres: As demandas das crianças de- vem ser atendidas pelos adultos. É fundamental lembrar que o desejo e  o ritmo da criança devem ser respeitados pelos adultos. E assim os pro- cessamentos saudáveis terão o lugar de equilíbrio e harmonia para a criança. Caso haja o desejo da criança ver imagens, vídeos do ente querido que faleceu, os adultos devem prover esses conteúdos de maneira que a criança possa continuar o seu processamento de luto saudável. Por outro lado, vários estudos revelam que o silêncio amplifica a dor e o sofrimento.

De  acordo  com  o  tema  do  seu  dou- torado,  a  ideia  de  que  falar  a  respeito  de  traumas  auxilia  na  superação. como  chegou  a  essa  conclusão?
Peres:  Observamos  há  muitos  anos na prática clínica que expressar a dor, significá-la para, em seguida, conseguirmos ressignificar o sofri- mento como um aprendizado que nos fortalece, é fundamental no pro- cesso de superação traumática. Falar, contar e recontar a história traumática com a perspectiva resiliente envolvem aquisição de aprendiza- dos que tornam a vida ainda melhor do que foi antes do trauma acontecer. Nós estudamos e continuamos pesquisando os efeitos neurobiológicos da psicoterapia, que  são,  em resumo: após a psicoterapia observamos maior atividade do córtex pré-frontal, relacionado à categorização e à classificação dos eventos, e menor  atividade  do  cérebro límbico emocional, em especial  da  amígdala,  relacionada à  expressão do  medo. De fato, o silêncio não é o melhor caminho a seguir. Contudo, o que observamos em nossos estudos e na prática clínica é que não basta simplesmente  falar  sobre  a dor.
É preciso, em  um primeiro mo- mento, expressá-la com as palavras possíveis ao indivíduo. Mas,  em um  segundo  momento,  é necessário que  o  indivíduo ressignifique a  dor,  buscando um sentido  maior para o que aconteceu e/ou uma aliança de aprendizado.

Em    boa    parte    dos    casos,   pessoas que  sofreram  algum  tipo  de  trauma   tendem   a   fugir   das  recordações    do    que    ocorreu.   seguindo sua   linha   de   raciocínio,  essa   não seria  a  maneira  correta  de  agir?
Peres:  Muitas  pessoas  chegam  à  minha clínica com uma fala recorrente: “Doutor Julio, vou contar uma coisa que eu nunca falei para ninguém. Isso me aconteceu há muitos anos e continua me atormentando, cada vez mais”. A partir do processo terapêutico, ao verbalizar esses conteúdos traumáticos com  a  orientação  profissional, mesmo com dificuldades, o indivíduo vai se sentindo progressivamente melhor e, ao término do processo, outras falas são recorrentes: “Eu deveria ter procurado ajuda muito antes e não precisaria ter sofrido por tantos anos em silêncio”.
Em    traumas    parecidos,   as    pessoas tendem  a  ter  reações  semelhantes?
Peres:    Os    eventos    aparentemente idênticos nunca serão os mesmos  para  cada  um  de  nós,  que  os representaremos de maneira absolutamente peculiar, às nossas histórias, memórias, dinâmicas psíquicas e maneiras de representar e processar a vida. A teoria “resposta universal ao trauma”, que postulava comportamentos idênticos a situações traumáticas específicas, foi desconstruída há mais de 20 anos, a partir da observação dos componentes subjetivos que envolvem as respostas es- pecíficas a cada indivíduo perante certo evento traumático.

O  que   faz   algumas   pessoas   lidarem  melhor  com  a  tragédia  do  que outras? é correto  dizer  que  umas são   mais   suscetíveis   aos   traumas do  que  outras?
Peres:  Algumas  pessoas  podem  ser mais suscetíveis a determinadas situações potencialmente traumáticas, assim como mais resilientes a outras situações também potencialmente traumáticas. Outra vez, a especificidade e as histórias de cada indivíduo fazem diferença para a compreensão da resposta a essa pergunta. A resiliência, que é a capacidade de atravessar situações difíceis e  voltar à qualidade satisfatória de vida, não é um envelope fechado, que algumas pessoas têm e outras não. A psicoterapia pode ensinar os mecanismos de resiliência que ainda não foram conquistados pelo indivíduo traumatizado. Isso não significa que esse mesmo indivíduo não tenha resiliência para outras situações. E esses repertórios de autoeficácia e superação são valiosos durante o processo de construção do novo aprendizado para superação do trauma. É um hábito na minha clínica resgatar as situações anteriores de  superação  na  infância e na  adolescência  e  compreender com clareza as estratégias utilizadas com eficácia no passado, para que as mesmas possam ser lembradas, recuperadas ou mesmo aperfeiçoadas para superar a  presente  dificuldade. Por exemplo, lembrar como você venceu o medo de escuro, aprendeu a andar de bicicleta, enfrentou e superou situações pode trazer subsídios para os desafios atuais de superação. Assim como o ferro é resiliente ao fogo, mas  não  é  resiliente à  água, e o bambu é resiliente ao vento,  mas não é resiliente ao fogo, nós somos resilientes a algumas situações e podemos não ser resilientes a outras.

Não  só  a  morte  é  responsável  por traumas, que  podem  acompanhar  a vida   da   pessoa   até   a   idade   adulta. o preconceito  e  o  bullying  podem provocar sérios transtornos psicológicos.  como   isso   se   dá   na mente  da  pessoa?
Peres:   Todos   nós   necessitamos   e buscamos o acolhimento, o afeto, que também nos conferem o senti- mento agradável de pertencer a um grupo. As pessoas que eu tive a oportunidade de atender em minha clínica, com bullying associado a seus traumas, trouxeram sentimentos de inferioridade, tristezas profundas e raiva por todos os abusos, críticas ácidas e humilhações que sofreram. O bullying pode deixar traços mnêmicos traumáticos severos, relacionados a falsas crenças de não ser bom o bastante para estar no mundo.

E  do   ponto   de   vista   do   preconceituoso   ou   da   pessoa   que   pratica   o bullying, quais  os  mecanismos  psíquicos  que  a levam  a  isso? a vítima  e  o abusador  precisam  de  tratamento?
Peres:  Por  muitas  vezes,  a  tentativa de compensação inconsciente a esses sentimentos dolorosos perpetua o ciclo traumático. Em outras palavras, o indivíduo foi vítima no passado e agora se torna o algoz, repetindo as dinâmicas de humilhação, de violência, de críticas que ele próprio sofreu. Em outras palavras, o indivíduo traumatizado pode traumatizar outras pessoas, proliferando o sofri- mento ao invés de atenuá-lo.

Como  são  tratados  esses  traumas, os  tratamentos  psicológicos  sozinhos,  normalmente,  obtêm   os   resultados esperados?
Peres:  A  superação  de  vários  casos em psicoterapia se relaciona com o desenvolvimento de um estado ampliado de consciência e a quebra do ciclo traumático através do perdão (etimologia: perdonare), que significa a maior e melhor doação que você possa fazer, porque se liberta do sofrimento, libertando também o outro que a fez sofrer.

Em    que    medida    família    e    amigos influenciam  no  processo  de  trata- mento   dos   traumas?  eles   sempre ajudam  ou podem  atrapalhar?
Peres:  O  suporte  saudável  de  familiares e amigos é também muito importante no processo de superação traumática, especialmente quando essas pessoas suportam a angústia do silêncio. É importante simplesmente e calmamente estar ao lado, escutando o amigo ou familiar traumatizado com a acústica da alma, sem emitir opiniões, críticas ou conselhos imediatistas de supostas resoluções.

A  psicoterapia    é    a    solução    para superar  os  traumas?
Peres:  Sim.  A  psicoterapia  é  a  primeira linha de escolha terapêutica para tratamento de indivíduos com traumas psicológicos, conforme re- visões sistemáticas e meta-análises publicadas em periódicos científicos.

Existe  um  tempo  mínimo  ou  máximo que a pessoa consiga superar um trauma    ou    depende    da    condição psíquica  dela  e  do  nível  do  trauma que  a  atingiu?
Peres: O tempo de tratamento é vari- ável, e na minha experiência clínica, em média, oito meses são suficientes para a superação do trauma psicológico. Algumas pessoas concluem seus processos com poucos meses; outras requerem um ano ou mais, a depender da magnitude traumática, da estrutura psíquica e dos recursos cognitivos pessoais que cada uma apresenta.

Veja o artigo completo no link abaixo:
Psique – A natureza do trauma

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