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A ciência reconhece que traumas podem ajudar no crescimento pessoal?

Sim, há mais de três décadas a Psicologia e a Psiquiatria estudam os diferenciais de comportamentos dos numerosos indivíduos que prosperaram (do latim pro+sperare: esperança adiante) após eventos traumáticos como esteios para formulações de estratégias terapêuticas. Em decorrência desses estudos o conceito resiliência vem sendo cada vez mais conhecido por psicoterapeutas. O termo resiliência vem da Física e refere-se à capacidade que um corpo tem de sofrer uma deformação pela ação de um agente externo e voltar à forma natural. Assim também, quando um indivíduo se depara com um evento estressor e sente o seu grande impacto, mas volta à qualidade satisfatória de vida, significa que ele possui ou desenvolveu resiliência. A literatura sobre estresse traumático conta com numerosos relatos de incidentes que revelaram vulnerabilidade e falhas em oferecer proteção efetiva contra a traumatização psicológica. É importante lembrar que resiliência não se trata de um mantra ou um desejado “envelope de segurança” implacável para situações de riscos que envolvem a surpresa. O fator crucial ao desenvolvimento da resiliência está em como os indivíduos percebem sua capacidade de lidar com os eventos e controlar seus resultados. Os diálogos internos de autopiedade, desamparo, autovitimização e autodepreciação podem realçar as emoções negativas relacionadas à memória traumática e exacerbar o sofrimento psicológico. Aos poucos, as pessoas que cultivam diálogos internos de enfrentamento, procurando modificar o presente positivamente, podem superar com os traumas psicológicos. A resiliência não é algo que alguns têm e outros não. Pode ser desenvolvida mesmo por indivíduos com traumas psicológicos e a psicoterapia favorece esse aprendizado.

Entrevista com Dr. Julio Peres concedida ao Jornal Correio Brasiliense

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Como os traumas das mais diversas naturezas podem proporcionar uma melhora na forma de encarar a vida e o desenvolvimento pessoal?

A angústia e o crescimento pós-trauma podem caminhar juntos e a melhora da qualidade de vida após a psicoterapia envolve geralmente cinco fatores: (1) desenvolvimento de novos interesses e objetivos; (2) apreciação e valorização da vida; (3) melhor relação familiar e interpessoal; (4) resgate da religiosidade e espiritualidade no dia-a-dia; (5) e descoberta de força e recursos pessoais para superação de adversidade. Em linha com alguns estudos publicados recentemente no Journal of Traumatic Stress, tenho observado que o crescimento pós-trauma se relaciona diretamente com o fortalecimento do caráter e o desenvolvimento das virtudes (ex: coragem, justiça, temperança, sabedoria, paciência, amor e esperança). Após a psicoterapia, muitos pacientes referem que suas qualidades de vida são relativamente superiores a que tinham antes mesmo do episódio traumático ocorrer.

Entrevista com Dr. Julio Peres concedida ao Jornal Correio Brasiliense

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A religiosidade e/ou a espiritualidade podem ajudar a superação do trauma?

Sim, mas não tínhamos estudos a respeito até as últimas décadas. As primeiras discussões sobre religião no âmbito da psicologia foram trazidas por Freud, que a considerou como remédio ilusório contra o desamparo. A crença na sobrevivência pós-morte estaria embasada no medo da morte, análogo ao medo da castração, e a situação à qual o ego estaria reagindo é a de ser abandonado. Atualmente, a experiência religiosa deixou de ser considerada fonte de patologia e, em muitas circunstâncias, passou a ser reconhecida como provedora do re-equilíbrio e saúde da personalidade. A religiosidade e a espiritualidade estão fortemente enraizadas numa busca pessoal para compreender a vida, seu significado e suas relações com o sagrado, o transcendente e podem oferecer suporte para indivíduos responderem a situações traumáticas em que fragilidade, vulnerabilidade e limites humanos são confrontados. Assim, as crenças e práticas espirituais e/ou religiosas podem contemplar essa necessidade de buscar um sentido para a vida e influenciar a maneira como as pessoas interpretam e lidam com acontecimentos traumáticos. Centenas de estudos têm investigado a relação entre envolvimento religioso e saúde mental. A maioria deles revela que quanto maior o envolvimento religioso, maior o bem-estar e a saúde mental. O uso positivo da religião esteve associado não só a melhores resultados físicos e mentais em pacientes com enfermidades graves, como também às vítimas de traumas psicológicos.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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O que é e qual a importância da resiliência?

O termo resiliência vem da Física e refere-se à capacidade que um corpo tem de sofrer uma deformação pela ação de um agente externo e voltar à forma natural. Assim também, quando um indivíduo se depara com um evento estressor e sente o seu grande impacto, mas volta à qualidade satisfatória de vida, significa que ele possui ou desenvolveu resiliência. A literatura sobre estresse traumático conta com numerosos relatos de incidentes que revelaram vulnerabilidade e falhas em oferecer proteção efetiva contra a traumatização psicológica. É importante lembrar que resiliência não se trata de um mantra ou um desejado “envelope de segurança” implacável para situações de riscos que envolvem a surpresa. O fator crucial ao desenvolvimento da resiliência está em como os indivíduos percebem sua capacidade de lidar com os eventos e controlar seus resultados. Os diálogos internos de autopiedade, desamparo, autovitimização e autodepreciação podem realçar as emoções negativas relacionadas à memória traumática e exacerbar o sofrimento psicológico. Aos poucos, as pessoas que cultivam diálogos internos de enfrentamento, procurando modificar o presente positivamente, podem superar com os traumas psicológicos. A resiliência não é algo que alguns têm e outros não. Pode ser desenvolvida mesmo por indivíduos com traumas psicológicos e a psicoterapia favorece esse aprendizado.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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Quais são os principais fatores relacionados ao crescimento pós-trauma?

Ao contrário do que se acreditava, psicólogos e psiquiatras começam a reconhecer o trauma como uma oportunidade para os indivíduos transformarem suas vidas para melhor. Experiências traumáticas podem criar oportunidades de crescimento pessoal através da introdução de novos valores e perspectivas para a vida. A angústia e o crescimento pós-trauma podem caminhar juntos e a melhora da qualidade de vida após a psicoterapia envolve geralmente cinco fatores: (1) desenvolvimento de novos interesses e objetivos; (2) apreciação e valorização da vida; (3) melhor relação familiar e interpessoal; (4) resgate da religiosidade e espiritualidade no dia-a-dia; (5) e descoberta de força e recursos pessoais para superação de adversidade. Em linha com alguns estudos publicados recentemente no Journal of Traumatic Stress, tenho observado que o crescimento pós-trauma se relaciona diretamente com o fortalecimento do caráter e o desenvolvimento das virtudes (ex: coragem, justiça, temperança, sabedoria, paciência, amor e esperança). Após a psicoterapia, muitos pacientes referem que suas qualidades de vida são relativamente superiores a que tinham antes mesmo do episódio traumático ocorrer.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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O que fazer quando as pessoas manifestam sintomas e comportamentos sugestivos de traumas sem se lembrarem dos eventos relacionados ao sofrimento?

Realmente, muitos pacientes com sintomas de TEPT, Fobias Específicas, Transtorno do Pânico, entre outros transtornos ansiosos, além de dificuldades específicas de relacionamento (filhos, cônjuge, etnias, etc.) não lembram os eventos desencadeadores de suas queixas. Outras especialidades médicas também observam a “força” do psiquismo em certas doenças, como os transtornos somatoformes (antiga mente chamadas de doenças psicossomáticas) influenciadas por memórias inconscientes como por exemplo: suor excessivo (hiperidrose), urticária crônica, prurido generalizado, pelada (alopecia areata), escoriações compulsivas, arrancamento de cabelos (tricotilomania), mordedura da pele dos lábios (queilofagia) ou da pele dos dedos (cutisfagia), roeção de unhas (onicofagia), psoríase, dermatite seborreica, vitiligo entre outras. Nesses casos, o acesso do paciente à atribuição de significados sobre a origem de suas queixas também pode acontecer na psicoterapia. Elaborada pela psiquiatra Maria Julia Peres a partir de1980, aTerapia Reestruturativa Vivencial Peres (TRVP) consiste em um processo de autorresolução de conflitos e tem trazido resultados terapêuticos eficientes para aqueles que apresentam sintomas, sofrimento subjetivo, padrões disfuncionais de comportamento e não conseguem explicar seus porquês ou suas raízes. Foi um privilégio para mim, como filho e psicólogo, acompanhar a formulação da TRVP e, em seguida, os resultados satisfatórios com os pacientes. A TRVP associa fundamentos da terapia cognitiva comportamental ao uso do estado modificado de consciência (EMC). O paciente é levado a um relaxamento físico e mental com base na respiração diafragmática, para conexão com conteúdos inconscientes que expliquem as causas de seu sofrimento. Quando tal significado é estabelecido, promove-se a reestruturação cognitiva, isto é, ressignifica-se terapeuticamente o trauma com a busca de aprendizados para o que foi vivenciado. Observa-se que os conteúdos, simbólicos ou factuais, que surgem em EMC, estão diretamente relacionados às angústias e dificuldades atuais do indivíduo. As imagens mentais aparecem com a atenuação do crivo das resistências manifestadas no raciocínio lógico durante o estado de vigília. Os conteúdos vivenciados representam uma verdade emocional subjetiva do indivíduo. São observadas vivências de infância, adolescência, vida adulta, parto, vida intra-uterina, situações simbólicas ou eventos que o indivíduo percebe como de vidas pregressas. O terapeuta pergunta ao paciente quais as relações entre os conteúdos vivenciados com as suas dificuldades e sintomas atuais, promovendo a conscientização das dinâmicas e diálogos internos mantenedores dos padrões disfuncionais de sentimento, pensamento e comportamento. Uma frase que sintetize o aprendizado terapêutico de cada vivência é elaborada pelo paciente e as novas dinâmicas mentais e de comportamento são exercitadas e fortalecidas gradualmente até que os sintomas sejam desarticulados.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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Falar sobre o evento que desencadeou o trauma é bom ou ruim?

Estudos com indivíduos traumatizados mostraram que o silêncio pode aumentar a dimensão subjetiva do trauma assim como amplificar o sofrimento. Por outro lado, cada vez que contamos e recontamos uma história estamos inserindo novos elementos cognitivos e a modificando. É muito importante falar sobre o trauma. A psicoterapia direciona essa “conversa orientada” no sentido da superação. As pessoas que não têm acesso à psicoterapia devem falar com familiares, amigos, religiosos (respeitando seus sistemas de crenças) confiáveis, que possam simplesmente ouvir num primeiro momento. Em seguida, é importante que a conversa tenha uma orientação ao aprendizado e à superação da dificuldade. Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto, escritor e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1986, escreveu e reescreveu suas experiências e certamente pode significar e ressignificar seus traumas por meio da sua obra. Esse exemplo de superação nos deixa uma importante lição: “…nós devemos falar. Ainda que não consigamos expressar nossos sentimentos e memórias da maneira mais adequada, devemos tentar. Precisamos contar nossa história tão bem quanto pudermos. Eu aprendi que o silêncio nunca ajuda a vítima, apenas o vitimizador… Se eu ficar em silêncio, enveneno minha alma”.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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O que são e os neurônios-espelho, e como eles podem nos ajudar a compreender os traumas?

O conjunto de investigações neurofuncionais em humanos permite hoje à Neurociência descrever a atividade dos neurônios-espelho como um mecanismo por meio do qual nós experimentamos a empatia, reconhecemos as intenções de outros indivíduos observando seus comportamentos, espelhamos essa referência e a fundimos em nosso repertório para a geração de comportamentos similares. É importante que a psicoterapia aplicada a pessoas traumatizadas facilite a percepção de novas possibilidades para a geração de comportamentos adaptativos. Costumo dizer aos pacientes que “visualizar o caminho antecipadamente é um passo fundamental para percorrê-lo”. A observação dos exemplos de pessoas que aprenderam com suas experiências traumáticas e se desenvolveram nessas bases é também facilitada depois que o indivíduo reconhece seus valores, talentos e capacidade de recuperação, porém, ainda não dispõe de referências para superar o trauma atual. Assim como observamos e espelhamos comportamentos de nossos semelhantes, o mesmo ocorre em relação aos que nos observam. Nossos próprios exemplos pacíficos de superação podem sensibilizar nossos filhos, colegas, pacientes e amigos. Nesse sentido, um bom exemplo nos deixou Galileu Galilei para a inspiração de nossos “espelhos”, ao afirmar: “Não é possível ensinar nada a ninguém, mas podemos, sim, sensibilizar alguém ao aprendizado”.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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O trauma psicológico pode ultrapassar os limites da esfera emocional e desencadear sintomas físicos?

Sim, as pessoas traumatizadas apresentam com frequência uma série de sintomas físicos, muitas vezes diagnosticados dentro do leque das síndromes somáticas funcionais, como a enxaqueca, fibromialgia, síndrome do intestino irritável, síndrome da fadiga crônica, entre outras. Uma das primeiras evidências nesse sentido foi trazida por um estudo publicado há mais de dez anos que investigou padrões de dores crônicas em veteranos de guerra com traumas psicológicos. Recentemente um estudo com 3.982 gêmeos mostrou etiologia traumática comum em nove condições (síndrome da fadiga crônica, dor lombar, síndrome do intestino irritável, cefaleia, fibromialgia, disfunção da articulação temporomandibular, depressão, ataques de pânico e TEPT). Chamamos atenção aos possíveis efeitos do trauma psicológico relacionados a dores crônicas em nossa recente publicação no periódico Current Pain Headache Report.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA

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Hoje as pessoas estão mais sujeitas aos traumas psicológicos?

A exposição a situações traumáticas tem sido constante ao longo de toda a História da humanidade e o trauma psicológico ocorre em indivíduos das mais variadas faixas etárias e classes sociais. Estudos epidemiológicos (em população de países) estimaram que a prevalência ao longo da vida para ocorrência de eventos potencialmente traumáticos pode alcançar de50 a90%, enquanto a prevalência do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) na população geral é estimada entre 8 e 10%. Na prática, isso significa que a maioria de nós vivenciou ou vivenciará pelo menos uma experiência passível de causar trauma psicológico. Nas últimas décadas, episódios potencialmente traumáticos têm se intensificado. As estatísticas indicam um crescente número de fatores violentos causados pelo homem, que, somados aos altos níveis de estresse e solidão nas metrópoles, tendem a gerar respostas de sofrimento mais exacerbadas e evoluir ao trauma psicológico, que se pode atenuar e do qual é possível se libertar com intervenção terapêutica especializada.

Trecho de entrevista concedida à FOLHA ESPÍRITA