De que forma o trauma pode se tornar uma oportunidade de transformação?
Vivemos sob fortes influências da cultura contemporânea do descartável, que incentiva diuturnamente comportamentos como a pressa, a praticidade e relações interepessoais rasas. Pessoas “coisificam-se” sucessivamente como produtos, ao passo que os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. Em meio ao mar da inconsciência e a pressa da vida diária, o trauma, por outro lado, pode despertar a busca de um sentido maior a existência. Uma oportunidade de transformação perante o evento traumático se concretiza quando a pessoa ao invés de recuar na auto-vitimização, dá um passo à frente, ainda que no início isso não seja fácil. As pessoas resilientes – com a capacidade de atravessar adversidades e voltar à qualidade satisfatória de vida – geralmente maximizam aprendizados por meio de suas experiências traumáticas e criam oportunidades de crescimento pessoal com a introdução de novos valores e perspectivas para a vida. A cultura Chinesa traz uma interessante contribuição sobre possibilidade de crescer a partir de acontecimentos dolorosos. A palavra “trauma” (chuangshang) é a justaposição de dois caracteres: “Criação” (chuang) e “Dor” (shang).
Qualquer pessoa teria essa condição inerente, ou só consegue isso quem já possui algumas características pessoais específicas?
Resiliência não é um “envelope fechado” protetor a qualquer circunstância dolorosa da vida e que alguns têm e outros não. Todos temos o potencial da superação assim como podemos aprender ou desenvolver novas estratégias resilientes. Vários autores reconhecem o potencial de crescimento frente à adversidade. Durante a última década, a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de comportamentos dos numerosos exemplos de pessoas que prosperaram (do latim pro+sperare: esperança a diante) após seus traumas como esteios para novas formulações de estratégias terapêuticas. O conjunto desses estudos revela que a resiliência, hoje, também pode ser aprendida e operacionalizada. Observamos que a angústia e o crescimento pós-trauma podem caminhar juntos quando uma aliança de aprendizado com o sofrimento é construída, favorecendo benefícios adicionais à qualidade de vida anterior a ocorrência do trauma.
Quais seriam essas características, e isso pode ser “treinado” ou desenvolvido? Como?
O resultado satisfatório de nossos pacientes e os estudos no campo da superação apontam que o crescimento pós-trauma se relaciona com o exercício pessoal ao fortalecimento do caráter e das virtudes – tais como a coragem, a generosidade, a justiça, a temperança, a paciência, a persistência, o amor e a esperança – e esses achados são também observados como preditivos de um estilo de vida saudável. Geralmente cinco fatores estão envolvidos nesse aprendizado: (1) abertura para novas experiências, interesses e objetivos de vida; (2) apreciação e valorização da vida; (3) melhor relação familiar e interpessoal permeada por gratidão, bondade e amor; (4) desenvolvimento ou resgate da religiosidade/espiritualidade no dia-a-dia e; (5) descoberta de força, coragem e perseverança para superação de adversidades.
Estamos fazendo uma matéria sobre mudanças e transformações. O tema é o que podemos e o que não podemos mudar e uma de nossas personagens é Diza Gonzaga, presidente da Fundação Thiago Gonzaga que faz um trabalho de prevenção à violência e mortes no trânsito e apoio às famílias que passaram por isso. Ela criou o trabalho, segundo seu próprio relato, ainda no asfalto quando foi recolher o corpo do filho de 18 anos morto em um acidente em maio de 95. Sem apoio médico ou psicólogico, ela se muniu uma grande força e começou a elaborar o trabalho da organização e, exatamente um ano após aquela noite, inaugurou a Fundação.
Ela conta que nunca superou a morte do filho, mas o trabalho a ajuda a evitar outras mortes e, dessa forma, a conforta. O que explicaria essa força?
Gerar novos objetivos de vida é de fato muito importante. Engajar-se em um novo projeto e tornar a própria experiência um veículo de propagação do bem auxiliam a reconstrução da vida após a perda de um ente querido. Além do exemplo de Diza Gonzaga, temos outros bons exemplos inspiradores como a Sociedade Viva Cazuza, obra da mãe do cantor, Lucinha Araújo. Lembro-me de um paciente que encarou a leucemia da mãe como uma forma de, não só superar o próprio trauma, como também de mobilizar outros cidadãos sobre a importância de ser um doador de medula óssea. Quando ele chegou ao consultório, estava desestruturado emocionalmente, sentia-se incapaz, impotente e com medo do que poderia acontecer. Durante a psicoterapia, percebeu que poderia ajudar a sua mãe e muitas outras famílias. Suas iniciativas foram importantes para conscientizar grande numero de pessoas, assim como para o seu crescimento e fortalecimento pessoal.
Como uma pessoa consegue agir dessa forma, enquanto outras se entregam ao luto e à dor?
Observamos respostas independentes e particulares em pessoas traumatizadas (perda de entes queridos, abortos, acidentes, separação conjugal, violência, conflitos graves, etc.) que buscam nossa clínica. Embora a maioria de nós passou ou passará por um ou mais eventos potencialmente traumáticos, nem todas as pessoas que atravessam tais experiências se tornam psicologicamente traumatizadas. Algumas sucumbem à vitimização, ao isolamento; outras procuram ajuda, amigos, literatura; outras desenvolvem transtornos de ansiedade, como pânico, Transtorno de Estresse Pós-Traumático; outras, depressão; outras são resilientes. O diferencial pode ser as escolhas, conscientes ou inconscientes, que fazemos perante as adversidades. A percepção do mundo é imensamente projetiva, e podemos decidir por nossas representações de realidade. O indivíduo traumatizado, diante dessa consciência, pode escolher novos significados, aprendizados e representação para o que houve no passado. Mesmo que inconscientemente, uma “escolha” foi feita por cada pessoa que sofreu o evento estressor. Tal escolha reflete o modo como ele vai se relacionar com o acontecimento. Muitas vezes, a experiência é tão devastadora que o referencial para um posicionamento ainda precisa ser encontrado e a psicoterapia pode ajudar nesse sentido. Cada vez que contamos e recontamos uma história estamos inserindo novos elementos cognitivos e a modificando. A psicoterapia direciona essa “conversa orientada” no sentido da superação. As pessoas que não têm acesso à psicoterapia devem falar com familiares, amigos, religiosos (respeitando seus sistemas de crenças) confiáveis, que possam simplesmente ouvir num primeiro momento. Em seguida, é importante que a conversa tenha uma orientação ao aprendizado e à superação da dificuldade.
A Diza conta que quando sua história e seu trabalho começaram a ganhar mais projeção com exposição na mídia, por exemplo, ela passou a ser procurada por pais que tinha vivenciado situação semelhante. Ela conta que se sentia meio perdida, porque ela mesma não se achava “curada” da dor e que, então, deu início à formação de um grupo de apoio formado por psicólogos.
Por que as pessoas que sofreram um trauma costumam procurar por outras em situação parecida? Isso é positivo ou pode “cutucar a ferida” ainda mais?
Geralmente as pessoas buscam os semelhantes que possam compreendê-las. Os estudos sobre os neurônios-espelho revelam, até o momento, que tais neurônios desempenham um papel fundamental para que os indivíduos compreendam o outro e suas intenções, sintam empatia e construam relacionamentos sociais. A identificação com o semelhante parecer ser um pré-requisito para a manifestação da propriedade-espelho. Verificamos em nosso estudo com neuroimagem com pessoas traumatizadas pré e pós psicoterapia (publicado no periódico Psychological Medicine em 2007), que o falar sobre a dor buscando aprendizados na experiência e um significado mais amplo para vida modificaram as expressões neurais envolvidas no sofrimento favorecendo a superação do trauma. Portanto, o falar é positivo nesse sentido, mas pode sim cutucar a ferida quando o falar enfatiza a injustiça e a auto-vitimização. Assim como observamos e espelhamos comportamentos de nossos semelhantes, o mesmo ocorre em relação aos que nos observam. Nossos próprios exemplos pacíficos de superação podem sensibilizar as pessoas que nos procuram, assim como nossos filhos, colegas e amigos. Um bom exemplo nos deixou Galileu Galilei para a inspiração de nossos “espelhos”, ao afirmar: “Não é possível ensinar nada a ninguém mas podemos, sim, sensibilizar alguém ao aprendizado”. Em meu livro “Trauma e Superação” enfatizo a necessidade de compartilhar exemplos de vida e superação para que indivíduos traumatizados possam, por meio da vivência de outros, sensibilizar a sua própria experiência de superação e crescimento pessoal.
Em condições “normais”, quando a pessoa não é capaz de superar o trauma sozinha, como se desenvolve o trabalho do profissional médico e/ou psicólogo?
Deve-se recorrer à psicoterapia quando o sofrimento for expressivo a ponto de limitar a vida diária, ou quando perdurarem sintomas como memórias recorrentes do trauma, distanciamento afetivo, pensamentos indesejáveis, insônia, irritação entre outros sintomas. Em particular, a Terapia de Exposição e Reestruturação Cognitiva é indicada como a abordagem de escolha ao tratamento de memórias traumáticas. Com base nas contribuições das neurociências ao trauma psicológico, desenvolvi um programa psicoterápico de 16 sessões, com intervalo semanal, que tem se mostrado eficaz para atenuação e remissão dos sintomas. Durante o processo o paciente é submetido a uma minuciosa anamnese (histórico clínico) e, em seguida, a sessões de reestruturação cognitiva, intercaladas por sessões integrativas, nas quais o exercício com as novas sínteses terapêuticas é avaliado e orientado.
Cite alguns casos de histórias de superação, por gentileza.
Destaco dois exemplos de superação extraídos do meu livro “Trauma e Superação: o que a Psicologia a Neurociência e a Espiritualidade ensinam”. São breves relatos de pacientes que enfrentaram suas dificuldades e modificaram significativamente suas vidas para melhor. Os nomes e as profissões foram modificados em respeito ao sigilo profissional. São exemplos de superação inspiradores às pessoas que vivem situações parecidas e ainda não encontraram um caminho para a boa qualidade de vida que merecem!
Renata, 26 anos, economista.
Nasci em um lar desestruturado e enfrentei muitos desafios na minha vida… Minha mãe teve quatro filhas, e meu pai nunca esteve presente. Minhas irmãs e eu vivemos enfurnadas por toda infância. Hoje sei que minha mãe sempre teve, mas nunca tratou, o transtorno bipolar. Cresci sem amor, sem amparo, sem reconhecimento… Percebia de alguma maneira a insanidade, havia algo muito errado com minha mãe, mas como criança não conseguia fazer nada. Foi muito difícil crescermos totalmente isoladas da parte saudável da família, que só conheci na idade adulta. Minha mãe, com sua loucura, não aguentou criar quatro meninas sozinha. A pressão era muito forte na minha irmã mais velha e em mim. Minha irmã teve problemas psicológicos gravíssimos, também não tratados, e acabou se matando! Aos 16 anos saí de casa para trabalhar e, com 21, decidi vender tudo que tinha e fugir para o exterior. Eu queria fi car longe da minha família, não aguentei a pressão e comecei uma vida nova bem longe, fora do país! Minhas irmãs seguiram meus passos e anos depois consegui trazê-las para perto… Percorri um longo caminho, e a terapia me ajudou a entender e nomear muitas dores, a curar os meus traumas e culpas por ter deixado minha família para sobreviver. Lembrando-me de tudo isso ao dar esse depoimento até parece que estou falando de uma outra pessoa. Às vezes, nem acredito que eu passei por tudo isso! Não sabia, mas agora sei que fui uma vitoriosa diante de tantas adversidades. Hoje, está tudo bem na minha vida… Olho para mim mesma com muito orgulho de ter conseguido tanto sem nenhum apoio, de forma alguma. No exterior eu aprendi a falar inglês, estudei e consegui um trabalho num conhecido banco de um grande centro financeiro internacional. Tenho um emprego muito bom e estou super bem financeiramente. Estou conhecendo a minha família no Brasil, tenho sete tios e sete tias! Adoro as minhas tias! Sou uma pessoa leve e aprendi a perdoar minha mãe…
Luiza, 62 anos, engenheira, casada, mãe de dois filhos.
Ainda com meus filhos pequenos eu me separei e, pouco tempo depois, o pai cometeu suicídio. Tive de arregaçar as mangas e trabalhar muito para prover as condições que considerava necessárias ao desenvolvimento das minhas crianças. Sem perceber, eu me tornei uma pessoa enérgica, forte e rígida. Considerava que se não fosse assim não daria conta de tudo… Muito tempo passou, meus filhos se formaram e mesmo assim, não sabia mais ser diferente…Continuava vivendo como se estivesse num campo de batalha, onde apenas os fortes sobrevivem. Ao mesmo tempo que superprotegia meus fi lhos, exigia deles a mesma força, garra e combatividade que eu desempenhava perante a vida. Considerava meus filhos fracos, incapazes e, por conta do meu temperamento bélico e perfeccionista, eles também ficaram “doentes”… Não dava espaço para meus filhos serem o que eram. Depois de muitas dificuldade, especialmente com o meu filho, admiti que precisava de ajuda… Entendi que aquele modelo fora necessário no passado, mas que não era o único. Minha principal superação foi modificar aquela estrutura pesada que carreguei por muitos anos. Consegui entrar em contato com meus sentimentos, com a minha sensibilidade e também com a minha fragilidade. A minha superação acabou por refletir na relação com os meus f lhos, hoje muito mais agradável. Vivo mais calma e me ocupo muito mais com a vida espiritual. Ainda preciso aprender muito, mas me sinto bem melhor e mais confortável.
Entrevista com o Dr. Julio Peres à Revista SORRIA 14/09/2010