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Trauma e a Transformação

De que forma o trauma pode se tornar uma oportunidade de transformação?

Vivemos sob fortes influências da cultura contemporânea do descartável, que incentiva diuturnamente comportamentos como a pressa, a praticidade e relações interepessoais rasas. Pessoas “coisificam-se” sucessivamente como produtos, ao passo que os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. Em meio ao mar da inconsciência e a pressa da vida diária, o trauma, por outro lado, pode despertar a busca de um sentido maior a existência. Uma oportunidade de transformação perante o evento traumático se concretiza quando a pessoa ao invés de recuar na auto-vitimização, dá um passo à frente, ainda que no início isso não seja fácil. As pessoas resilientes – com a capacidade de atravessar adversidades e voltar à qualidade satisfatória de vida – geralmente maximizam aprendizados por meio de suas experiências traumáticas e criam oportunidades de crescimento pessoal com a introdução de novos valores e perspectivas para a vida. A cultura Chinesa traz uma interessante contribuição sobre possibilidade de crescer a partir de acontecimentos dolorosos. A palavra “trauma” (chuangshang) é a justaposição de dois caracteres: “Criação” (chuang) e “Dor” (shang).

Qualquer pessoa teria essa condição inerente, ou só consegue isso quem já possui algumas características pessoais específicas?

Resiliência não é um “envelope fechado” protetor a qualquer circunstância dolorosa da vida e que alguns têm e outros não. Todos temos o potencial da superação assim como podemos aprender ou desenvolver novas estratégias resilientes. Vários autores reconhecem o potencial de crescimento frente à adversidade. Durante a última década, a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de comportamentos dos numerosos exemplos de pessoas que prosperaram (do latim pro+sperare: esperança a diante) após seus traumas como esteios para novas formulações de estratégias terapêuticas. O conjunto desses estudos revela que a resiliência, hoje, também pode ser aprendida e operacionalizada. Observamos que a angústia e o crescimento pós-trauma podem caminhar juntos quando uma aliança de aprendizado com o sofrimento é construída, favorecendo benefícios adicionais à qualidade de vida anterior a ocorrência do trauma.

Quais seriam essas características, e isso pode ser “treinado” ou desenvolvido? Como?

O resultado satisfatório de nossos pacientes e os estudos no campo da superação apontam que o crescimento pós-trauma se relaciona com o exercício pessoal ao fortalecimento do caráter e das virtudes – tais como a coragem, a generosidade, a justiça, a temperança, a paciência, a persistência, o amor e a esperança – e esses achados são também observados como preditivos de um estilo de vida saudável. Geralmente cinco fatores estão envolvidos nesse aprendizado: (1) abertura para novas experiências, interesses e objetivos de vida; (2) apreciação e valorização da vida; (3) melhor relação familiar e interpessoal permeada por gratidão, bondade e amor; (4) desenvolvimento ou resgate da religiosidade/espiritualidade no dia-a-dia e; (5) descoberta de força, coragem e perseverança para superação de adversidades.

Estamos fazendo uma matéria sobre mudanças e transformações. O tema é o que podemos e o que não podemos mudar e uma de nossas personagens é Diza Gonzaga, presidente da Fundação Thiago Gonzaga que faz um trabalho de prevenção à violência e mortes no trânsito e apoio às famílias que passaram por isso. Ela criou o trabalho, segundo seu próprio relato, ainda no asfalto quando foi recolher o corpo do filho de 18 anos morto em um acidente em maio de 95. Sem apoio médico ou psicólogico, ela se muniu uma grande força e começou a elaborar o trabalho da organização e, exatamente um ano após aquela noite, inaugurou a Fundação.

Ela conta que nunca superou a morte do filho, mas o trabalho a ajuda a evitar outras mortes e, dessa forma, a conforta. O que explicaria essa força?

Gerar novos objetivos de vida é de fato muito importante. Engajar-se em um novo projeto e tornar a própria experiência um veículo de propagação do bem auxiliam a reconstrução da vida após a perda de um ente querido. Além do exemplo de Diza Gonzaga, temos outros bons exemplos inspiradores como a Sociedade Viva Cazuza, obra da mãe do cantor, Lucinha Araújo. Lembro-me de um paciente que encarou a leucemia da mãe como uma forma de, não só superar o próprio trauma, como também de mobilizar outros cidadãos sobre a importância de ser um doador de medula óssea. Quando ele chegou ao consultório, estava desestruturado emocionalmente, sentia-se incapaz, impotente e com medo do que poderia acontecer. Durante a psicoterapia, percebeu que poderia ajudar a sua mãe e muitas outras famílias. Suas iniciativas foram importantes para conscientizar grande numero de pessoas, assim como para o seu crescimento e fortalecimento pessoal.

Como uma pessoa consegue agir dessa forma, enquanto outras se entregam ao luto e à dor?

Observamos respostas independentes e particulares em pessoas traumatizadas (perda de entes queridos, abortos, acidentes, separação conjugal, violência, conflitos graves, etc.) que buscam nossa clínica. Embora a maioria de nós passou ou passará por um ou mais eventos potencialmente traumáticos, nem todas as pessoas que atravessam tais experiências se tornam psicologicamente traumatizadas. Algumas sucumbem à vitimização, ao isolamento; outras procuram ajuda, amigos, literatura; outras desenvolvem transtornos de ansiedade, como pânico, Transtorno de Estresse Pós-Traumático; outras, depressão; outras são resilientes. O diferencial pode ser as escolhas, conscientes ou inconscientes, que fazemos perante as adversidades. A percepção do mundo é imensamente projetiva, e podemos decidir por nossas representações de realidade. O indivíduo traumatizado, diante dessa consciência, pode escolher novos significados, aprendizados e representação para o que houve no passado. Mesmo que inconscientemente, uma “escolha” foi feita por cada pessoa que sofreu o evento estressor. Tal escolha reflete o modo como ele vai se relacionar com o acontecimento. Muitas vezes, a experiência é tão devastadora que o referencial para um posicionamento ainda precisa ser encontrado e a psicoterapia pode ajudar nesse sentido. Cada vez que contamos e recontamos uma história estamos inserindo novos elementos cognitivos e a modificando. A psicoterapia direciona essa “conversa orientada” no sentido da superação. As pessoas que não têm acesso à psicoterapia devem falar com familiares, amigos, religiosos (respeitando seus sistemas de crenças) confiáveis, que possam simplesmente ouvir num primeiro momento. Em seguida, é importante que a conversa tenha uma orientação ao aprendizado e à superação da dificuldade.

A Diza conta que quando sua história e seu trabalho começaram a ganhar mais projeção com exposição na mídia, por exemplo, ela passou a ser procurada por pais que tinha vivenciado situação semelhante. Ela conta que se sentia meio perdida, porque ela mesma não se achava “curada” da dor e que, então, deu início à formação de um grupo de apoio formado por psicólogos.

Por que as pessoas que sofreram um trauma costumam procurar por outras em situação parecida? Isso é positivo ou pode “cutucar a ferida” ainda mais?

Geralmente as pessoas buscam os semelhantes que possam compreendê-las. Os estudos sobre os neurônios-espelho revelam, até o momento, que tais neurônios desempenham um papel fundamental para que os indivíduos compreendam o outro e suas intenções, sintam empatia e construam relacionamentos sociais. A identificação com o semelhante parecer ser um pré-requisito para a manifestação da propriedade-espelho. Verificamos em nosso estudo com neuroimagem com pessoas traumatizadas pré e pós psicoterapia (publicado no periódico Psychological Medicine em 2007), que o falar sobre a dor buscando aprendizados na experiência e um significado mais amplo para vida modificaram as expressões neurais envolvidas no sofrimento favorecendo a superação do trauma. Portanto, o falar é positivo nesse sentido, mas pode sim cutucar a ferida quando o falar enfatiza a injustiça e a auto-vitimização. Assim como observamos e espelhamos comportamentos de nossos semelhantes, o mesmo ocorre em relação aos que nos observam. Nossos próprios exemplos pacíficos de superação podem sensibilizar as pessoas que nos procuram, assim como nossos filhos, colegas e amigos. Um bom exemplo nos deixou Galileu Galilei para a inspiração de nossos “espelhos”, ao afirmar: “Não é possível ensinar nada a ninguém mas podemos, sim, sensibilizar alguém ao aprendizado”. Em meu livro “Trauma e Superação” enfatizo a necessidade de compartilhar exemplos de vida e superação para que indivíduos traumatizados possam, por meio da vivência de outros, sensibilizar a sua própria experiência de superação e crescimento pessoal.

Em condições “normais”, quando a pessoa não é capaz de superar o trauma sozinha, como se desenvolve o trabalho do profissional médico e/ou psicólogo?
Deve-se recorrer à psicoterapia quando o sofrimento for expressivo a ponto de limitar a vida diária, ou quando perdurarem sintomas como memórias recorrentes do trauma, distanciamento afetivo, pensamentos indesejáveis, insônia, irritação entre outros sintomas. Em particular, a Terapia de Exposição e Reestruturação Cognitiva é indicada como a abordagem de escolha ao tratamento de memórias traumáticas. Com base nas contribuições das neurociências ao trauma psicológico, desenvolvi um programa psicoterápico de 16 sessões, com intervalo semanal, que tem se mostrado eficaz para atenuação e remissão dos sintomas. Durante o processo o paciente é submetido a uma minuciosa anamnese (histórico clínico) e, em seguida, a sessões de reestruturação cognitiva, intercaladas por sessões integrativas, nas quais o exercício com as novas sínteses terapêuticas é avaliado e orientado.

Cite alguns casos de histórias de superação, por gentileza.

Destaco dois exemplos de superação extraídos do meu livro “Trauma e Superação: o que a Psicologia a Neurociência e a Espiritualidade ensinam”. São breves relatos de pacientes que enfrentaram suas dificuldades e modificaram significativamente suas vidas para melhor. Os nomes e as profissões foram modificados em respeito ao sigilo profissional. São exemplos de superação inspiradores às pessoas que vivem situações parecidas e ainda não encontraram um caminho para a boa qualidade de vida que merecem!

Renata, 26 anos, economista.

Nasci em um lar desestruturado e enfrentei muitos desafios na minha vida… Minha mãe teve quatro filhas, e meu pai nunca esteve presente. Minhas irmãs e eu vivemos enfurnadas por toda infância. Hoje sei que minha mãe sempre teve, mas nunca tratou, o transtorno bipolar. Cresci sem amor, sem amparo, sem reconhecimento… Percebia de alguma maneira a insanidade, havia algo muito errado com minha mãe, mas como criança não conseguia fazer nada. Foi muito difícil crescermos totalmente isoladas da parte saudável da família, que só conheci na idade adulta. Minha mãe, com sua loucura, não aguentou criar quatro meninas sozinha. A pressão era muito forte na minha irmã mais velha e em mim. Minha irmã teve problemas psicológicos gravíssimos, também não tratados, e acabou se matando! Aos 16 anos saí de casa para trabalhar e, com 21, decidi vender tudo que tinha e fugir para o exterior. Eu queria fi car longe da minha família, não aguentei a pressão e comecei uma vida nova bem longe, fora do país! Minhas irmãs seguiram meus passos e anos depois consegui trazê-las para perto… Percorri um longo caminho, e a terapia me ajudou a entender e nomear muitas dores, a curar os meus traumas e culpas por ter deixado minha família para sobreviver. Lembrando-me de tudo isso ao dar esse depoimento até parece que estou falando de uma outra pessoa. Às vezes, nem acredito que eu passei por tudo isso! Não sabia, mas agora sei que fui uma vitoriosa diante de tantas adversidades. Hoje, está tudo bem na minha vida… Olho para mim mesma com muito orgulho de ter conseguido tanto sem nenhum apoio, de forma alguma. No exterior eu aprendi a falar inglês, estudei e consegui um trabalho num conhecido banco de um grande centro financeiro internacional. Tenho um emprego muito bom e estou super bem financeiramente. Estou conhecendo a minha família no Brasil, tenho sete tios e sete tias! Adoro as minhas tias! Sou uma pessoa leve e aprendi a perdoar minha mãe…

Luiza, 62 anos, engenheira, casada, mãe de dois filhos.

Ainda com meus filhos pequenos eu me separei e, pouco tempo depois, o pai cometeu suicídio. Tive de arregaçar as mangas e trabalhar muito para prover as condições que considerava necessárias ao desenvolvimento das minhas crianças. Sem perceber, eu me tornei uma pessoa enérgica, forte e rígida. Considerava que se não fosse assim não daria conta de tudo… Muito tempo passou, meus filhos se formaram e mesmo assim, não sabia mais ser diferente…Continuava vivendo como se estivesse num campo de batalha, onde apenas os fortes sobrevivem. Ao mesmo tempo que superprotegia meus fi lhos, exigia deles a mesma força, garra e combatividade que eu desempenhava perante a vida. Considerava meus filhos fracos, incapazes e, por conta do meu temperamento bélico e perfeccionista, eles também ficaram “doentes”… Não dava espaço para meus filhos serem o que eram. Depois de muitas dificuldade, especialmente com o meu filho, admiti que precisava de ajuda… Entendi que aquele modelo fora necessário no passado, mas que não era o único. Minha principal superação foi modificar aquela estrutura pesada que carreguei por muitos anos. Consegui entrar em contato com meus sentimentos, com a minha sensibilidade e também com a minha fragilidade. A minha superação acabou por refletir na relação com os meus f lhos, hoje muito mais agradável. Vivo mais calma e me ocupo muito mais com a vida espiritual. Ainda preciso aprender muito, mas me sinto bem melhor e mais confortável.

 Entrevista com o Dr. Julio Peres à Revista SORRIA 14/09/2010

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Felicidade no ambiente corporativo

Há estudos que comprovem que profissionais felizes trazem melhores resultados?

Sim. O World Values Survey abordou o sistema de valores humanos em mais de 60 países e mostrou que a felicidade está relacionada a uma maneira coerente de viver. Alguns fatores que compõem um estilo de vida provedor de felicidade foram encontrados, como: o suporte social (boa convivência com a família, os colegas de trabalho e os amigos) esteve fortemente relacionado à felicidade; voluntariado e caridade estiveram associados ao maior significado de vida e felicidade; as pessoas com autoestima elevada e que se sentem úteis e realizam suas atividades profissionais com mérito (variáveis dependentes) são mais felizes; as pessoas que relatam com frequência o sentimento de gratidão têm maiores índices de afetos positivos e felicidade. Em suma, índices maiores de cooperatividade estiveram fortemente relacionados à felicidade, e como conseqüência ao melhor desempenho profissional. Vale lembrar que o estado subjetivo chamado de felicidade abrange um conjunto dinâmico de vivências, como: momentos de prazer fugazes na vida diária (surpresa agradável, prazer sensorial ao tomar banho, almoçar, ouvir uma música, etc.); satisfação com a vida, prazer mais duradouro (envolvendo o relacionamento diário com família, trabalho e amigos) e satisfação com a vida, bem-estar perene (compreendendo estilo de vida, gratidão, motivação e contentamento íntimo, propósito e significado amplos para a vida). Portanto, são várias as possíveis manifestações humanas de afeto positivo. As neurociências trazem uma convergência de achados que sugerem o envolvimento de diversas regiões do sistema límbico e sinalizações dopaminérgicas em estados afetivos positivos. Os receptores opióides e GABA no estriado ventral, na amígdala e no córtex orbitofrontal, assim como vários neuropeptídeos podem participar de experiências relacionadas ao prazer sensorial e a satisfação.

O ambiente competitivo é estimulante em muitos sentidos. Você acredita que ele também pode causar a infelicidade?

Sim. Vivemos, atualmente, sob fortes influências de consumo em um contexto cultural árido de significados para o sentido da vida. A cultura contemporânea do descartável incentiva diuturnamente comportamentos como a competitividade, a pressa, a praticidade e a obtenção imediata dos bens que, supostamente, trariam conforto e aplacariam a angústia do vazio, assim como a ausência de sentido para a existência. Os relacionamentos interpessoais são igualmente influenciados pela oferta dos meios ágeis de comunicação, que favorecem interface superficial com grande número de pessoas (redes de relacionamento via internet), incitando contatos por interesse em vantagens imediatas e relações também descartáveis. Pessoas “coisificam-se” sucessivamente como produtos, ao passo que os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. A cultura dos grandes centros urbanos com bombardeamento de informações, responsabilidades e objetivos, às vezes inexequíveis, propõe um estilo de vida competitivo contrário ao objetivo prometido de felicidade. Muitos executivos se consideram bem-sucedidos profissionalmente, apesar de não gozarem de boa saúde e declararem insatisfação com a vida pessoal. Assim, a competitividade aliada a ansiedade prevalente na cultura atual pode trazer malefícios importantes a saúde e a qualidade de vida.

Quando um gestor percebe que há um funcionário infeliz e que talvez ele desmotive os demais. O que fazer?

A infelicidade de um funcionário deve ser avaliada com profundidade. Pode ser que o mesmo esteja atravessando uma dificuldade familiar, uma perda afetiva, uma enfermidade, ou qualquer outro sofrimento de forum íntimo. Contudo, tal funcionário pode ser também uma pessoa mais sensível e o “primeiro da lista” a manifestar o “sintoma”, isto é: o sinal que algo vai mal na dinâmica da empresa. O gestor deve dedicar atenção especial a essa pessoa que potencialmente sinaliza pela infelicidade o início de uma doença no organismo empresarial ainda não reconhecida. Após compreender as raízes de sua infelicidade o gestor deve genuinamente auxiliar o funcionário a superar a sua dificuldade, e talvez para isso, seja preciso cuidar de todo o organismo.

Caso a tristeza seja por uma razão alheia a empresa (motivos pessoais) qual é a postura mais adequada para a empresa?

O suporte social é muito importante àquele que atravessa um sofrimento. De acordo com os estudos sobre o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, a maioria de nós passou ou passará por um trauma (perda de entes queridos, enfermidades, acidentes, etc.). As pessoas que promovem auxílio ao processo de superação de alguém, em geral são lembradas por este com grande estima ao longo da vida. Assim, a postura da empresa deve ser alinhada ao auxílio do indivíduo, que quando superar sua dificuldade poderá vivenciar benefícios adicionais à qualidade de vida anterior a ocorrência do trauma, além da genuína gratidão.

Quais fatores estão ligados à felicidade no ambiente corporativo?

A etimologia da palavra trabalho (do latim tripalium) refere-se a um instrumento romano de tortura, um tripé cravado no chão, onde eram supliciados os escravos. Por causa de sua ligação com a tortura, por meio desse instrumento, a palavra trabalho, consciente ou inconscientemente, tem sido muitas vezes relacionada com padecimento e sofrimento. Durante a última década, a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de comportamentos dos numerosos exemplos de indivíduos que prosperaram (do latim pro+sperare: esperança a diante) diante dos desafios que a vida impõe. A felicidade no ambiente corporativo se relaciona com a promoção da consciência ampliada e de um sentido maior para a existência, que naturalmente motiva o indivíduo em sua vida diária.

Qual postura as empresas devem ter para incentivar cada vez mais o funcionário?

Tenho observado no ambiente corporativo um impacto muito positivo de palestras que proporcionam o despertar da consciência e a sensibilização de um significado mais amplo para vida. O desenvolvimento das virtudes como a coragem, a justiça, a temperança, a sabedoria, a paciência, a esperança e o amor promovem uma melhora significativa na qualidade do viver – com os colegas, funcionários, chefia, amigos e família. Atualmente, além da experiência clínica temos uma vasta literatura científica a respeito do crescimento pessoal. Tais informações chegam aos poucos ao público geral, que começa a compreensão o passo-a-passo prático alinhado a construção de um estilo de vida consistente de bem-estar e realização pessoal.

No seu livro “Trauma e Superação: o que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade ensinam” tem algum case sobre ambiente de trabalho? Se sim, pode comentar?

Sim. Ainda com seus filhos pequenos uma empresária bem sucedida pediu o divórcio. Ela teve que arregaçar as mangas e trabalhar muito para prover as condições que considerava necessárias ao desenvolvimento de suas crianças. Sem perceber, ela se tornou uma pessoa enérgica, forte e rígida também no ambiente profissional. Muito tempo passou, os filhos se formaram e mesmo assim, ela não sabia mais ser diferente. Continuava vivendo como se estivesse num campo de batalha no âmbito profissional. Considerava a todos fracos, incapazes e, por conta do seu temperamento bélico e perfeccionista, os funcionários também ficavam “doentes” ou se demitiam por não agüentarem as pressões. Ela admitiu que precisava de ajuda e após a psicoterapia compreendeu que aquele modelo fora necessário no passado, mas que não era o único. Seu principal desafio foi modificar aquela dinâmica de comportamento e entrar em contato com um novo repertório de suavidade e calma perante a vida. Sua superação refletiu na relação mais agradável com o entorno e a intimidade tranqüila trouxe resultados ainda mais prósperos a sua empresa, assim como a sua vida.

Entrevista com o Dr. Julio Peres “Felicidade no ambiente corporativo”

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Cultura contemporânea e ansiedade

Cultura contemporânea e ansiedade

O veloz mundo contemporâneo fornece poucos valores essenciais à vida em equilíbrio. Novas “necessidades” são artificialmente criadas a cada dia, imbuídas da falsa promessa de bem-estar. Incentiva-se apressa, a praticidade e o consumo imediato dos bens que, supostamente, trariam conforto e aplacariam a angústia e a ausência de sentido para a existência.

Temperança e significado para vida

A temperança e o tempo para um mergulho íntimo são necessários na busca do significado mais amplo para o viver e a psicoterapia tem ajudado muitas pessoas dispostas a mudarem suas vidas para melhor. A melhora consistente da qualidade de vida das pessoas que após eventos traumáticos decorrentes da ansiedade crônica (acidentes por dirigir e falar ao celular, internações hospitalares, enfarto, etc.) buscaram a psicoterapia envolve geralmente cinco fatores: (1) desenvolvimento de novos interesses e objetivos com maior significado para existência, (2) apreciação e valorização da vida, (3) melhor relação familiar e interpessoal, (4) resgate da religiosidade e espiritualidade no dia-a-dia e a (5) descoberta de força e recursos pessoais para superação de adversidades.

Ansiedade

A ansiedade é um estado emocional comum e provavelmente tenha sido selecionada como um importante fator para a preservação da espécie humana. O estado ansioso é definido como um comporta mento de alterações físicas (taquicardia, sudorese, hiperventilação, aumento da pressão arterial) e psíquicas (apreensão, inquietude, alerta). Como um sinalizador antecipatório de possíveis ameaças ou mesmo diante da ameaça, a ansiedade altera de forma vantajosa o pensamento, a fisiologia e o comportamento humano com ajustes para sobrevivência. Nossos ancestrais provavelmente tenham antecipado riscos reais durante a caça e a vida diária, exercendo algum controle sobre a incidência de ameaças letais por intermédio da ansiedade. Apesar de a ansiedade estar presente em todos os seres humanos, alguns indivíduos a manifestam com intensidade e duração exacerbadas, impedindo a continuidade equilibrada da vida. A relação ansiedade x desempenho deixa de ser vantajosa quando o “sistema é sobrecarregado cronicamente”, impactando em déficits cognitivos como lapsos de memória e dificuldade de concentração, assim como sintomas de hiper-estimulação autonômica (insônia, irritabilidade, descontrole emocional, intolerância, agressividade, etc.).

Estresse

O médico austríaco Hans Selye empregou em 1936, comotermo médico, a palavra inglesa stress para definir os mecanismos neuroendócrinos adaptativos do organismo a estímulos exteriores, sejam positivos ou negativos. Em 1950, Selye publicou a obra que o consagrou, na qual expôs a síndrome geral de adaptação. Apesar de o termo inicialmente ser definido como uma resposta necessária e saudável, hoje o conceito está associado à sobrecarga e ao prejuízo da qualidade de vida. A cultura metropolitana cada vez mais estimula o sobrepeso do alto desempenho, da competitividade e de metas desafiadoras, às vezes impossíveis de serem alcançadas. Esse contexto de excessiva competitividade favorece tensões, conflitos, depreciação do relacionamento interpessoal, além de baixa autoestima e solidão.

Entrevista com o Dr. Julio Peres à Revista BOA FORMA – Marica Di Domenico

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Adolescente e o Vestibular

Como os adolescentes costumam se sentir quando não passam no vestibular e precisam ingressar em um cursinho pré-vestibular?

A cultura contemporânea do descartável incentiva diuturnamente comportamentos como a competitividade, a pressa, a praticidade e a obtenção imediata dos bens que, supostamente, trariam conforto e felicidade. Não passar no vestibular, para o adolescente que se esforçou, pode trazer imensa frustração e profundo sofrimento. As supostas “derrotas” podem assumir uma dimensão subjetiva tão expressiva a ponto de desencadear isolamento social, distorções depreciativas da auto-imagem, enfermidades e/ou transtornos mentais como a depressão. O sofrimento decorrente das derrotas depende em boa parte dos diálogos internos que o adolescente alimenta, e essa “leitura” por muitas vezes se torna um marco, saudável ou não, que influencia as próximas experiências de vida.

Como o adolescente deve interpretar a situação para não ter esses sentimentos de fracasso?

O adolescente pode reconhecer que o vestibular não avalia as capacidades, os talentos e as inteligências múltiplas dos indivíduos testados. Portanto, não passar em um “teste” restrito não deve afetar a imagem do adolescente como um todo. Costumo dizer para os meus pacientes adolescentes que chegam ao consultório frustrados ou deprimidos “Não entre em estado de fusão com o resultado”. As diversas inteligências (lógico-matemática, linguística, emocional, musical, espacial, corporal-cinestésica, intrapessoal, interpessoal, existencial, entre outras) não são objetos que possam ser quantificados, mas potenciais ativados conforme as oportunidades oferecidas pela cultura e as decisões pessoais de investimento. A despeito do vestibular não investigar propriamente tal conjunto de fatores, o formato atual de avaliação é o que dispomos no momento e assim, o adolescente pode objetivamente encarar o desafio com uma consciência ampliada que o protege da ansiedade e favorece uma performance melhor a partir da tranqüilidade.

 Que benefícios os jovens podem ter cursando um cursinho pré-vestibular e “atrasando” seu ingresso na universidade? De que maneira essa “derrota” pode contribuir para o crescimento do jovem estudante?

Todas as experiências que atravessamos ampliam nosso repertório de vida e com isso as habilidades para lidarmos com adversidades. Relacionei uma síntese dos exemplos práticos de adolescentes que cresceram e se desenvolveram psicologicamente com base nos aprendizados adquiridos em suas experiências inicialmente frustrantes relacionadas à derrota.

  • Aceitar que você errou ou foi derrotado não é uma fraqueza. Ao contrário, é um ato de coragem a favor da integração (do latin integrare: tornar-se inteiro) que pode fortalecer o caráter e a disposição para seguir em frente.
  • O princípio da impermanência (tudo se encontra em movimento e transformação) se mostra em todo o Universo, do micro ao macrocosmo. Ainda que o sofrimento da derrota pareça permanente, lembre-se que esse estado também será passageiro. Pensar sobre novos caminhos para superação e focar o seu investimento no cursinho ou estudo disciplinado abreviarão o sofrimento.
  • As derrotas abrem portas para aquisição de conhecimentos relativos as variáveis que não foram consideradas anteriormente. Os conhecimentos adquiridos com a derrota não são restritos ao momento e beneficiarão também outros domínios da vida. Assim, a derrota pode ser apenas parte de uma história de conquista.
  • A disponibilidade ao aprendizado confere um estado de ânimo saudável e desconstrói a autovitimização, que só leva ao sofrimento. O que você diz para si e para os outros sobre o que ocorreu pode tanto aliviar como exacerbar o sofrimento. A fixação em diálogos internos do tipo “Isso é injusto” ou “Não poderia ter acontecido comigo” dificulta a recuperação e favorece a continuidade da dor. Assumir a responsabilidade em relação ao que você pode fazer agora traz de volta o controle para suas mãos e a capacidade para seguir em frente.
  • As neurociências mostram que lembrar compreende a reconstrução de informações coerentes por meio de fragmentos disponíveis de modo que o conjunto faça sentido. Assim, o passado é flexível e modifica-se com novas interpretações das recordações e reexplicações do que aconteceu. Se você buscar pelo menos um aprendizado advindo da derrota o sentido da sua história modificará para melhor. O psiquismo é ágil e tal agilidade pode ser orientada a favor do bem-estar.
  • A superação de uma derrota ou frustração está diretamente relacionada ao que a Psicologia chama de Aprendizado de Extinção: o adolescente estabelece uma nova hierarquia de respostas num processo ativo de aprendizado. Assim, as novas associações construídas substituem aquelas que geravam o sofrimento decorrente da derrota.
  • Criar alianças de aprendizado com as adversidades predispõe e favorece a superação psicológica. De fato, as dificuldades perdem força a medida que o aprendizado por elas trazido for absorvido. O repertório de aprendizados decorrentes de uma derrota pode trazer uma qualidade de vida superior a que você tinha antes mesmo da derrota acontecer.
  • A maturidade se relaciona indiretamente com o passar do tempo e diretamente com o aprendizado que as experiências trouxeram. Conforme traduz o provérbio oriental “Saber e não fazer, ainda não é saber”. As lições trazidas pelas derrotas tornam o adolescente mais maduro e portanto, com mais recursos para concretizar o objetivo de passar no vestibular.
  • As derrotas, quando bem elaboradas, favorecem a geração de novos objetivos e estratégias para atingi-los. É preciso buscar novos significados para a superação da frustração e alcance do objetivo. Demarcar precisamente o objetivo e o estado desejado desperta a motivação e o investimento da energia na direção certa, sem desgaste com o sofrimento.
  • Nossos estudos com neuroimagem mostraram o que acontece no cérebro das pessoas que aprenderam com seus sofrimentos. Novas classificações e traços de memória se formam no cérebro, substituindo as conexões neurais anteriores envolvidas com o sofrimento. Essa evidência reforça a importância de aprender com a dificuldade em vez de sucumbir a ela.

Enfim, por que precisar fazer cursinho não é “o fim do mundo”?

Erros e acertos, assim como as frustrações fazem parte do processo natural de aprendizado que permeia todas as fases do desenvolvimento humano. Todos nós erramos e acertamos no passado e isso continuará acontecendo ao longo da vida. Continuar o enfrentamento do dia-a-dia com o repertório cada vez mais lapidado é um preditivo para construção da vida saudável e harmoniosa.

Como os pais devem lidar com essa situação na vida dos filhos?

O suporte afetivo é fundamental a partir de gestos verdadeiros como estar ao lado, abraçar, ou mesmo chorar ao lado. Quando o adolescente sofre o impacto da frustração os pais não devem falar muito. A empatia inicial com o sofrimento é importante para o adolescente se sentir amparado e compreendido na sua dor. Depois desta primeira etapa, o diálogo pode iniciar. Assim como a perda de um ente querido dispara um processo de luto, que é necessário, natural e saudável, o adolescente deve atravessar a dor emocional para então sair dela. Em meu consultório oriento os pais a não tentarem fazer de conta que nada aconteceu, ou a “simplificarem” o sofrimento. Quando isso acontece, o adolescente carrega a angústia da frustração não processada devidamente afetando o seu desempenho futuro.

Entrevista com o Dr. Julio Peres “Adolescentes e o Vestibular”

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Procedimentos estéticos e cirurgias plásticas

Procedimentos estéticos e cirurgias plásticas podem ajudar a melhorar a auto-estima?

Procedimentos estéticos e cirurgias plásticas podem ajudar a melhorar a auto-estima especialmente quando o objetivo é corrigir más formações ou deformidades causadas por acidentes. Além de pacientes traumatizadas em acidentes (carro, fogo, quedas, etc.) outros pacientes que receberam apelidos na escola ou faculdade por protuberâncias anatômicas relativas aos seios, ao nariz ou orelhas obtiveram benefícios significativos na auto-estima a partir das cirurgias.

Até que ponto essa prática pode ser considerada saudável?

É preciso termos cuidado com as fortes influências do veloz mundo contemporâneo, que fornece poucos valores essenciais à vida em harmonia. Novas “necessidades” são artificialmente criadas a cada dia, imbuídas da falsa promessa de bem-estar. Incentiva-se a pressa, a praticidade, o consumo imediato dos bens e a estética impecável que supostamente trazem a sensação de pertencer ao mundo. Contudo, a estética se tornou um importante bem de consumo que não necessariamente diminui as angústias, a solidão ou a ausência de sentido para a existência. Assim, pessoas “coisificam-se” sucessivamente como produtos, ao passo que os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. Os procedimentos estéticos e cirurgias plásticas conferem grandes riscos aqueles que inconscientemente buscam aplacar suas angústias por este caminho. Nada será o bastante para quem considera pouco o que é suficiente e nesse sentido e as intervenções cirúrgicas podem chegar a um número desmedido com ampla exposição a riscos.

É possível dizer que as pessoas passaram a supervalorizar a imagem? A que o Sr. atribui isso?

A visão é um dos principais sistemas de percepção e aprendemos o mundo imensamente pelas informações que sensibilizam nossos receptores visuais. Decodificamos visualmente sinais que garantem nossa sobrevivência (agressividade, simpatia, antipatia, rejeição, acolhimento, etc.) e por isso a primeira avaliação do entorno é pela imagem. Estabelecemos com o tempo algumas associações relativas à estética como, por exemplo, o belo com o saudável e o feio com o temor. Assim, a boa aparência é bem vinda e pode assegurar o pertencimento ao grupo, o que implica na aceitação do grupo e em última análise na sobrevivência. No mundo contemporâneo, a eminência e os riscos de morte modificaram em relação à vida de nossos ancestrais há milhares de anos, mas a necessidade de sobreviver continua a mesma para grande parte da população. A supervalorização da beleza estética pode ser demasiada para muitas pessoas que ainda inconscientemente buscam sobreviver, num mundo que poderiam simplesmente viver.

É normal as pessoas enxergarem os problemas estéticos maiores do que eles realmente são?

Sim. A natureza projetiva de nossas percepções, baseadas em nossas memórias e crenças, pode distorcer a auto-imagem, tornando os problemas estéticos maiores do que eles realmente são, gerando assim grande sofrimento. A psicoterapia tem ajudado muitas pessoas a corrigirem essas distorções negativas e desconstruírem suas angústias.

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Os Jovens e o Vício

Por que os jovens dependentes buscam apoio nas religiões?

As religiões em geral ensinam o perdão, o amparo de Deus e a absolvição por meio do caminho do bem fornecendo maneiras de pensar o mundo que atendem algumas necessidades dos jovens que buscam a libertação da dependência química. A raiz da palavra religião (religare) exprime o sentido de volta à essência, retorno à origem criadora da vida. As tradições religiosas de maneira geral estabelecem os caminhos para o homem religar-se à origem verdadeira de sua natureza, podendo dessa forma viver em harmonia e equilíbrio. Os jovens dependentes quase sempre perdem, por algum tempo, a estabilidade constituída para conduzir o dia a dia. Isso pode favorecer o enfraquecimento da motivação para viver, o isolamento e a depressão. Solidão, vazio, desesperança e desamparo são palavras utilizadas, com frequência, por jovens dependentes para exprimirem seus estados emocionais. Nessas e em outras condições, muitas pessoas buscam um novo significado e propósito para suas vidas. A religiosidade e a espiritualidade estão fortemente enraizadas numa busca pessoal para compreender a vida, seu significado e suas relações com o sagrado ou o transcendente. Assim, as crenças e práticas espirituais e/ou religiosas podem atender essa necessidade dos jovens de buscar um sentido mais amplo e uma melhor qualidade para a vida.

Quais são os principais elementos religiosos que fazem com que esses jovens deixem o vício? Por quê?

Além da experiência clínica, centenas de estudos mostram a relação entre envolvimento religioso e saúde. A maioria deles revela que quanto maior o envolvimento religioso, maior o bem-estar e a saúde, ressaltando três principais aspectos:

  1. A espiritualidade e a religião são geralmente benéficas para lidar com a superação dos desafios pessoais.
  2. A dependência química pode sensibilizar os jovens a busca de um aprofundamento da religiosidade e da espiritualidade com o objetivo de superação.
  3. O uso produtivo da religião, a abertura espiritual/religiosa, a prontidão para enfrentar questões existenciais e a participação religiosa estão associados ao crescimento pessoal.

Observo na minha clínica que o uso da religiosidade e da espiritualidade na superação da dependência tem algo especial a oferecer: pode capacitar os indivíduos a responderem a situações em que tenham de se deparar com os limites do poder e do controle humanos no confronto com a vulnerabilidade. Além disso, crenças e práticas religiosas podem reduzir a sensação de perda do controle e de desamparo; podem fornecer uma estrutura cognitiva capaz de diminuir o sofrimento e, ainda, fortalecer o indivíduo para reconstrução de sua vida.

Como a fé ajuda nas fases de abstinência?

A falta de confiança e esperança pode favorecer o esmorecimento diante do desafio pessoal de atravessar a fase de abstinência e chegar ao objetivo de superação da dependência. O caminho da superação envolve várias fases e a fé, por outro lado, favorece importantes ganhos nessa jornada diária, como a potencialização da motivação e da confiança, para o enfrentamento das dificuldades em momentos críticos de impasse entre dar “um passo atrás” (recaída) ou “um passo a frente” (superação). O ato de crer teria sido tão vantajoso para os nossos ancestrais há milhares de anos que um maior número de pessoas sobreviveram a partir da fé, deixando mais descendentes que espalharam esse traço adiante. Esse grupo possivelmente teve mais esperança, coragem e enfrentou com mais motivação as adversidades. A abstinência é um convite para recaída caso o jovem não tenha um firme propósito de superá-la e a fé pode ser um elemento fundamental nessa travessia. Lembro-me de um paciente que há 8 anos, durante as crises de abstinência, repetia com fervor “isso vai passar e dias melhores virão!”. Hoje, de fato ele vive dias muito melhores.

Como a religiosidade influencia no psicológico dos que querem deixar as drogas? Que elementos ela trabalha?

Religião pode ser entendida como um sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos projetados para auxiliar a proximidade do individuo com o sagrado e/ou transcendente, enquanto Espiritualidade envolve a busca pessoal de respostas sobre o significado da vida e sobre o relacionamento com o sagrado e/ou transcendente. A confiança subjetiva manifestada pela crença em um Deus responsivo pode influenciar positivamente jovens que atravessaram o processo de libertação das drogas. As religiões e a espiritualidade constituem uma parte importante da cultura, dos princípios e dos valores utilizados pelas pessoas (apenas 7% da nossa população não têm religião) para dar forma a julgamentos e ao processamento de informações. O conceito de enfrentamento e superação pelo uso da religiosidade envolve vários elementos como o apoio espiritual (busca de conforto por meio de amor e cuidado divinos), a entrega religiosa ativa (fazer o que é possível quanto às responsabilidades pessoais e confiar em Deus) e a busca de uma conexão espiritual e de uma direção religiosa. Vale lembrar o que o filósofo Sêneca nos ensina “É parte da cura o desejo de ser curado”, contudo, “Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável”. Durante a psicoterapia o objetivo, ou seja, o Estado Desejado deve ser esclarecido e determinado, despertando a energia da vontade necessária ao investimento pessoal nesse processo de mudança. A vontade é um atributo essencial ao ser humano e pode ser exercitada para o cumprimento dos objetivos psicoterápicos.

As chances de quem busca a fé ter uma recaída diminuem?

Sim, certamente. A fé pode ser cultivada ao longo do tempo por meio da religiosidade presente em grupos de apoio social (igrejas, templos, grupos de oração etc.), que em geral desencorajam comportamentos autodestrutivos como o uso de drogas e álcool e incentiva o perdão e a continuidade da vida alinhada à saúde. Nos grupos, exemplos de superação de indivíduos que aprenderam e se desenvolveram a partir de suas superações, que cresceram espiritualmente e adquiriram tranqüilidade ao lidar com as dificuldades podem ser referências para novos processamentos e enquadres cognitivos de outros jovens que buscam a estabilidade do bem-estar. A fé cultivada na atividade religiosa pode ser comunitária (com idas freqüentes ou disciplinadas a igreja, templos etc.), individual ou mesmo informal (orações em casa, leitura, escutar ou assistir a programas de TV) e essas práticas protegem o jovem da recaída.

Há mais alguma informação que queira/possa nos passar sobre o tema?

Gostaria de acrescentar que pesquisas científicas sugerem que a autoconfiança necessária à superação da dependência envolve três dimensões:

  1. A motivação de encontrar sentido na vida diária.
  2. A crença de que se pode influenciar o entorno e os resultados dos eventos.
  3. A opinião de que se pode aprender e crescer a partir das experiências positivas e negativas.

Esses aspectos predispõem à confiança, ao suporte social e à superação das adversidades. Há 15 anos a Psicologia e a Psiquiatria têm estudado os diferenciais de comportamentos dos numerosos indivíduos que superam grandes dificuldades. O fortalecimento das virtudes e do caráter (coragem, justiça, temperança, sabedoria, paciência, gratidão, solidariedade, persistência, amor e esperança) esteve relacionado ao crescimento dessas pessoas após o enfrentamento e a superação de importantes dificuldades. Finalmente, observo como psicólogo clínico que um objetivo bem demarcado e a disciplina no dia a dia fortalecida na motivação de construir uma vida verdadeiramente melhor são ingredientes decisivos a prosperidade (do Latim pro+sperare: esperança a diante) dos jovens.

Entrevista com o Dr. Julio Peres à Revista MALU

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Emoções e a escrita

Uma pesquisa na Universidade de Kansas, nos EUA, acompanhou 180 mulheres em estágio inicial do câncer de mama por três meses. As que passaram seus sentimentos para o papel tiveram metade dos problemas físicos relacionados ao tratamento. Por que escrever sobre as próprias emoções ajuda a melhorar a saúde?

Aprender a falar, a ler e a escrever é aprender a traduzir. Talvez, o que aprendemos nos primeiros dois anos de vida seja mais importante que todo o conhecimento reunido ao longo de uma extensa formação acadêmica. Ainda que a palavra (falada e escrita) não seja a única via para comunicação, certamente é uma das mais usadas no contexto terapêutico. Um dos focos do tratamento terapêutico de pessoas traumatizadas ou que atravessam adversidades importantes consiste justamente na tradução da experiência, buscando palavras que a sintetizem. À medida que vamos traduzindo a ocorrência em sínteses (representações narrativas), conseguimos atribuir significados à vivência pessoal, equacioná-la e, finalmente, superá-la com natural impacto positivo na saúde. Por outro lado, ficar em silêncio não impede que as angústias e sofrimentos se manifestem com toda a sua potência e, mais grave ainda, não permite o processamento do trauma, a reestruturação da ocorrência dolorosa pelo indivíduo e a sua superação.

Escrever também pode ajudar a ter domínio sobre as emoções e, consequentemente, mais autoconhecimento? Por que?

Escrever é de fato conhecer melhor a si mesmo. A riqueza de nossas experiências individuais é projetiva e imensamente subjetiva, e os aprendizados adquiridos nesse processo estão entre os pilares da constituição dos comportamentos diários. Ao escrevermos nossas experiências podemos observar e reconhecer as projeções do nosso eu, ampliando o aprendizado sobre nós mesmos. Muitos psicólogos e filósofos analíticos acreditam que o pensamento é completamente verbal, como sempre realizado por meio de palavras. Essa ideia fortaleceu-se com o surgimento de estudos de Linguística, contrapondo-se à concepção alternativa segundo a qual os pensamentos são imagens incorpóreas que flutuam na mente. Independentemente de assegurar que todos os pensamentos se realizam mediante palavras ou não, certamente muitos assim ocorrem. Isto é, por meio das palavras traduzimos sínteses do que pensamos e reflexos do que somos; entretanto, os pensamentos têm amplitude e refinamento muito maiores do que a capacidade de “tradução” das palavras. Portanto, o autoconhecimento por meio da escrita é um caminho interminável.

Quais os outros benefícios que a escrita pode trazer para a vida das pessoas?

A escrita como exercício pessoal favorece a construção de recursos pessoais para lidar mais harmoniosamente com os eventos de vida. O processamento de nossas experiências pessoais é bastante peculiar e, por tal razão, eventos comuns ou importantes são percebidos, codificados e processados de maneira muito particular. Quando alguém escreve sobre a sua experiência, está representando códigos associados à memória do que ocorreu. Nesse processo, construímos, reconstruímos significados e descobrimos novas versões do episódio ao qual nos referimos, ampliando assim as possibilidades de manejar os acontecimentos diários com repertório mais amplo, refinado e, portanto, mais eficaz para cultivo do bem-estar.

Por que tanta gente tem dificuldade em lidar com as emoções, especialmente as negativas?

Muitas pessoas traumatizadas evitam falar sobre o trauma para evitar um retorno ao horror experimentado, proliferando assim efeitos ainda piores dos sintomas. A supressão dos pensamentos – tentativa deliberada de evitar certos pensamentos – é uma estratégia de enfrentamento frequentemente associada a sintomas de indivíduos com traumas psicológicos. Paradoxalmente, a dificuldade de expressar as emoções e enfrentar as adversidades aumentam o problema/sofrimento, que a psicoterapia tem ajudado muitas pessoas desconstruírem. Por exemplo, uma explicação neurobiológica do tratamento eficaz sugere que novos traços de memória se formam em um cérebro plástico por meio da fala e da escrita orientadas, substituindo as conexões anteriores que produziam o sofrimento e as reações de ansiedade.

Do ponto de vista psicológico, o que acontece quando colocamos nossos sentimentos no papel?

As palavras frequentemente são o veículo dos nossos pensamentos. Atribuir palavras às nossas experiências é criar significado e representação para elas. O trauma psicológico está relacionado à ausência de significado semântico. Assim como as crianças, as pessoas traumatizadas precisam atribuir significados para então conseguirem explicar o que ocorreu. É necessário decifrar (interpretar as cifras ou o que está mal escrito) o trauma para superá-lo. Um dos focos do tratamento terapêutico de indivíduos traumatizados consiste justamente na tradução da experiência buscando palavras que a sintetizem, em lugar de suprimir os pensamentos. O desafio das abordagens terapêuticas é levar o paciente para fora desse “mundo indescritível” (sem representações) por meio da atribuição de significado aos conteúdos emocionais e sensoriais dispersos. A terapêutica do trauma não está simplesmente em contar a história, mas em como fazê-lo: é preciso estabelecer uma aliança de aprendizado com a adversidade.

Nesse sentido, fazer um diário pode ajudar? 

Sim, o diário pode ajudar e muito. Assim fez Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto, escritor e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1986. Wiesel escreveu e reescreveu suas experiências e certamente pode significar e ressignificar seus traumas por meio da sua obra. Esse exemplo de superação nos deixa uma importante lição: “…nós devemos falar. Ainda que não consigamos expressar nossos sentimentos e memórias da maneira mais adequada, devemos tentar. Precisamos contar nossa história tão bem quanto pudermos. Se eu ficar em silêncio, enveneno minha alma”.

No caso de desentendimentos com pessoas queridas, escrever também pode ajudar a solucionar os problemas com quem você gosta?

Sim, especialmente se a “temperatura emocional” estiver alta. As reações impulsivas e pouco processadas cognitivamente são freqüentes quando a raiva, a tristeza ou o medo prevalecem. Lembro ainda que a velocidade de processamento do pensamento é muito superior a velocidade que podemos escrever. Na prática, ao falarmos podemos mais facilmente reagir, inflamar as emoções e dificultar o entendimento em comparação a condição da escrita. Por outro lado, ao escrevermos temos que diminuir o “ritmo interno” para sincronizarmos o pensamento a funções motoras envolvidas na escrita e com isso, conseguimos uma organização mental relativamente superior a que se manifesta quando falamos diretamente o que pensamos. O benefício da escrita chega para as duas partes: quem escreve, lê e reescreve pode se organizar cognitivamente para melhor traduzir o que tem em mente, sem a ebulição emocional, enquanto quem recebe o texto tem a oportunidade de ler, reler o conteúdo, atenuar a reação emocional e favorecer a resposta assertiva para a ocasião. Depois dessa etapa, o contato pessoal pode ser mais tranqüilo, o que certamente favorece o entendimento mutuo.

Quais as dicas para quem gostaria de escrever, mas não sabe por onde começar?

Sugiro que histórias com relevância emocional e aprendizados consistentes sejam escritas. Ainda que um sentido maior não tenha sido encontrado para determinada passagem de vida, vale a pena escrever sobre o tema que permanece aberto. Os neurocientistas Eric Kandel e Larry Squire mostraram que lembrar implica reconstrução de uma trama coerente por meio de fragmentos disponíveis. Durante a escrita, é natural que insights aconteçam e um novo significado na direção do bem-estar seja processado, se assim você desejar.

Entrevista com o Dr. Julio Peres “Emoções X Escrita”

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Como ajudar as crianças a lidar com o trauma psicológico

Para o psicólogo Julio Peres, garantir a segurança e dar oportunidade à criança de expressarem as suas emoções são os primeiros passos para superação do trauma

O trauma psicológico envolve situações inesperadas com expressão emocional/sensorial superior a capacidade do indivíduo de processar cognitivamente essas excitações. Não existe uma resposta universal para o trauma, é natural que diferentes reações pós-traumáticas sejam apresentadas como, por exemplo: estado de alerta contínuo, insônia, pesadelos, isolamento, silêncio, estado de choque, amortecimento emocional, agressividade, medo, entre outras. Respostas de hiperestimulação (medo e alerta) são comuns, como se o trauma fosse acontecer novamente. Alguns cuidados específicos podem abreviar mais facilmente o sofrimento e construir a superação das pessoas que apresentam sintomas pós-trauma.

“Garantir a segurança do ambiente é o primeiro passo do processo de superação traumática. Nenhuma estratégia terapêutica poderá ajudar se a pessoa traumatizada ainda estiver em contato com o evento estressor e, portanto, em risco para re-traumatização. Porém, para poder transmitir essa mensagem de segurança, os pais devem acreditar nela, isto é: se a embalagem emocional não estiver de acordo com o conteúdo, o efeito pode ser muito pior quanto a angústia, a incerteza da dupla mensagem e a dissociação provocadas”, explica Julio Peres, psicólogo clínico e doutor em Neurociência e Comportamento pela USP.

O segundo passo é favorecer que a criança expresse em palavras (ou em expressões artísticas como desenhos), as suas emoções, angústias e sensações para significar e representar a ocorrência traumática. Conforme o psicólogo, ao invés de alguns pais evitarem falar sobre o assunto traumático na tentativa de proteger os seus filhos, eles devem escutar seus filhos várias e várias vezes. “Além disso, os pais devem abordar o evento traumático com clareza e calma, sem ocultar os fatos”, ressalta.

O acesso a exemplos de superação ajudam na representação de uma nova perspectiva para saída do trauma, gerando uma esperança que contrapõe o sofrimento: ‘se ele superou, eu também posso’. Por isso, a ajuda profissional somada ao apoio e segurança passados pelos pais, permitirão que essas crianças consigam superar o trauma, servindo também de exemplo para outras pessoas.

“Contudo, se após quatro semanas os sintomas continuarem, é preciso procurar ajuda profissional. Com a ajuda de um psicólogo ou psiquiatra especializados em Transtorno de Estresse Pós-Traumático, a criança conseguirá atribuir significados aos fatos e em seguida ressignificá-los na direção da superação”, completa o psicólogo Julio Peres.

Entrevista com o Dr. Julio Peres “Como ajudar as crianças a lidar com o trauma”

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O Poder do Pensamento

Você acredita no poder do pensamento? Por quê? Já teve provas de que ele realmente existe? Qual (ou quais?)

Vários estudos evidenciam que a utilização consciente e voluntária do pensamento pode alterar a forma como o cérebro processa os estímulos que recebemos do ambiente assim como a própria saúde. A opinião e as expectativas também podem modificar as atividades neuroquímicas nas regiões do cérebro relacionadas a dor e a expressões emocionais agradáveis assim como desagradáveis. O efeito placebo – relacionado ao que acreditamos como verdades – é um dos fenômenos mais comuns em medicina e psicologia e uma das mais robustas provas do poder do pensamento. Por exemplo, a Universidade de Harvard testou o efeito placebo em pessoas asmáticas. Cerca de 40% dos pacientes estudados obtiveram melhoras significativas com o placebo. Um estudo mais ousado sobre o valor da cirurgia de ligação de uma artéria no tórax em pacientes com angina (dor no peito) usou simplesmente a anestesia e o corte superficial como placebo. Os pacientes “realmente” operados foram comparados com o grupo-Placebo, que mostrou 80% de melhora enquanto os primeiros (com cirurgia) melhoraram apenas 40%. Pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica afirmam que o simples ato de receber algum tipo de tratamento (seja ele ativo ou não) pode ser eficiente por conta da expectativa de benefício que ele cria. Ficou evidente assim que o pensamento pode provocar alterações benéficas ou maléficas, a depender da crença da pessoa. A psicoterapia, trabalha justamente com os diálogos internos que geram sofrimento com o objetivo de trazer compreensão e mudanças dos pensamentos no sentido do bem estar e da saúde.

Como podemos, no dia a dia,  “educar” nosso pensamento, de forma que ele seja positivo? Treino? Curso? Esforço e mentalização? Tomar conta do que pensamos?

A agilidade de nosso psiquismo é fantástica e precisa ser orientada no sentido da saúde para que essa dinâmica não se volte contra nós mesmos sob as fortes influências da cultura ansiosa em que vivemos. As novas tecnologias de entretenimento e a comercialização dos bens materiais ocorrem de maneira acelerada e disparam excitação, euforia e ansiedade que ensombram a consciência dos valores perenes e essenciais a vida em harmonia. A cultura predominante no ocidente apresenta um ritmo lépido e pujante com bombardeamento de informações, responsabilidades e metas às vezes inalcançáveis. Novas “necessidades” são criadas incentivando comportamentos como a pressa, a praticidade e consumo imediato dos bens que supostamente trariam conforto e felicidade. Os relacionamentos inter-pessoais são também influenciados pela oferta dos meios ágeis de comunicação (celulares, comunicadores instantâneos móveis via net, redes de relacionamento, entre outros) que favorecem interface superficial com grande número de pessoas incitando contatos por interesse em vantagens imediatas e relações também descartáveis. Pessoas se “coisificam” como produtos sucessivamente enquanto os vínculos afetivos se tornam cada vez mais frágeis. É preciso diminuir o ritmo interno para que possamos orientar nossos pensamentos na direção dos valores perenes que constituem o bem-estar e a saúde. Muitas pessoas chegam ao meu consultório com resíduos acumulados de ansiedade e dissociação que favorecem a manifestação de quadros como fobias, pânico, estresse pós-traumático e depressão. Recomendo vários exercícios que permitem o controle e direcionamento dos pensamentos para construção da qualidade harmoniosa do viver. O sistema nervoso central pode aprender que não estamos na guerra com o cultivo das vivências sensoriais agradáveis. O foco do pensamento e a presença integral nas atividades simples do dia-a-dia como a alimentação, o banho, o caminhar, etc favorecem a quebra dos pensamentos automatizados. Técnicas de relaxamento, exercícios meditativos e práticas contemplativas para conexão com o sentido maior da existência promovem a tranqüilidade necessária para desfrutar o viver ao invés de sobreviver como refém da inconsciência.

Qual o maior obstáculo para educar o pensamento?

A indisciplina é o maior obstáculo para educar o pensamento. Vale lembrar que disciplina não se relaciona com obrigação ou esforço, mas com o ouvir as verdadeiras necessidades e se responsabilizar por elas. O pensamento permite a autorregulação emocional ativando diferentes circuitos neurais conforme a vontade (ou desejo) que modifica a qualidade de nossas vidas. Uma vez esclarecidos os objetivos de nossas vidas, despertamos a energia da vontade necessária ao investimento pessoal na construção da existência verdadeiramente satisfatória. Trazer a consciência ampliada do sentido maior das nossas vidas para o dia-a-dia requer disciplina.

Você acha que o ser humano tem a tendência de pensar negativamente e ser pessimista? Por que será que é mais fácil ser pessimista?

A maioria de nós certamente lembra mais facilmente de eventos ruins que de eventos agradáveis, mas não podemos dizer que este fenômeno – constatado em vários estudos neurocientíficos – determina uma tendência ao pessimismo. Teorias baseadas na evolução das espécies têm uma possível explicação para isso: nossos ancestrais que lembravam melhor das situações perigosas e das ameaças sofridas individualmente ou pela comunidade garantiram mais a sobrevivência há milhares de anos, quando os riscos de morte eram numerosos e a sobrevida girava em torno dos 25 ou 30 anos. Muito provavelmente nós trazemos essa herança de sobrevivência. Por exemplo, quando passamos por um evento potencialmente traumático, lembramos com nitidez da situação e reagimos exageradamente, em estado de alerta, a qualquer “dica” que lembre o evento (acidente, assalto, traição, etc.). A psicoterapia é a primeira escolha de tratamento para as pessoas traumatizadas que não conseguem modificar tais comportamentos de temor contínuo que objetivaram inicialmente proteger a vida, mas depois se tornaram problemáticos.

Você concorda com a máxima que diz que “você é o que você pensa”? O que isso realmente quer dizer?

Sim concordo. Os pensamentos têm como base as nossas memórias. A partir de experiências particulares construímos associações que influenciam nossas percepções sobre nós mesmos e sobre o mundo. Em outras palavras, o pensamento busca em nossas memórias os conteúdos que permitem a sua expressão. Aprender a falar é aprender a traduzir o pensamento. Talvez, o que aprendemos nos primeiros dois anos de vida seja mais importante que todo o conhecimento reunido ao longo de uma extensa formação acadêmica. Muitos psicólogos acreditam que o pensamento é completamente verbal e realizado por meio de palavras. Essa idéia fortaleceu-se com o surgimento de estudos de Linguística, contrapondo-se à concepção alternativa segundo a qual os pensamentos seriam imagens que flutuam na mente. Assim, por meio das palavras traduzimos sínteses do que pensamos; entretanto, os pensamentos têm amplitude e refinamento muito maiores do que a capacidade de “tradução” das palavras. Os pensamentos se associam a estados emocionais e como conseqüência constroem a qualidade de nossas vidas. Um dos focos do tratamento terapêutico de indivíduos traumatizados consiste justamente na tradução da experiência, buscando palavras que a sintetizem. À medida que vamos traduzindo a ocorrência dolorosa em sínteses (ou representações narrativas), conseguimos atribuir significados à vivência pessoal, equacioná-la e, finalmente, superá-la.

Você acredita que, com a força da mente, podemos conseguir o que queremos? Nós é que somos responsáveis pelos nossos sucessos e fracassos?

Equívocos e acertos fazem parte do processo natural de aprendizado que permeia todas as fases do desenvolvimento humano. Todos nós erramos e acertamos no passado e isso continuará acontecendo ao longo da vida. Contudo, os fracassos podem assumir uma dimensão subjetiva tão expressiva a ponto de desencadear isolamento social, distorções depreciativas da auto-imagem, enfermidades e/ou transtornos mentais como a depressão. Estabelecer uma aliança de aprendizado com os erros tem despertado muitas pessoas para buscas e reflexões que configuram qualidades de vida geralmente superiores àquelas vivenciadas antes da ocorrência indesejada. O fracasso pode ser parte de uma história de sucesso. Para isso, a força da mente precisa ser organizada e direcionada para que consigamos de fato ser bem sucedidos. Se você sabe andar de bicicleta, faça um teste para compreender na prática o que eu disse: coloque dois anteparos separados, como batentes de porta, com o vão livre próximo à medida do guidão de sua bicicleta. Tente passar entre os dois anteparos olhando para um deles. Em seguida, passe os anteparos olhando para uma linha reta imaginária no meio, entre os batentes. Verifique que, ao fixar o olhar em um dos anteparos, a probabilidade de nele bater o guidão aumenta, ao passo que olhar para uma linha reta imaginária entre os anteparos aumenta as chances de passar livremente entre eles. Assim também funciona nosso psiquismo: olhe para onde você quer ir, aumentando suas probabilidades de chegar lá. Em psicoterapia também “vamos para onde olhamos” e, por isso, além de trabalhar os sintomas, é fundamental iluminar e mobilizar o saudável.

Como “treinar” o cérebro? Como as coisas “se materializam” através da força do pensamento?

É preciso ter cuidado com as idéias divulgadas com viés econômico do tipo “ganhe milhões de dólares com a força do pensamento”. Podemos sim materializar muito dos nossos pensamentos por aumentar as chances probabilísticas a partir do direcionamento da vontade em um caminho entre muitos outros. Por exemplo, se você desejar comer morangos de sobremesa no jantar, você estará aumentando a probabilidade para esta ocorrência, desde que você faça a sua parte como procurar, encontrar e trazer os morangos para sua casa. Entre inúmeras possibilidades, ao pensar no morango, as chances de comê-lo aumentam muito, mas se não houver morangos disponíveis, por mais forte que seja o pensamento, o objetivo não se materializará. Nossos estudos em psicoterapia expostos no meu livro “Trauma e Superação: o que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade ensinam” revelam que a motivação embasada na força do pensamento bem orientado impulsiona as pessoas a superarem as dificuldades para a construção de uma vida genuinamente melhor.

Entrevista com o Dr. Julio Peres concedida à RJ            

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TEPT e o Ambiente de Trabalho

O que exatamente é o TEPT?

O TEPT é um transtorno de ansiedade precipitado por um ou mais eventos estressores de magnitude psicológica ao indivíduo. As situações traumáticas experimentadas ou testemunhadas geralmente envolvem ameaça à vida ou à integridade física de si próprio ou de pessoas a ele afetivamente ligadas. Situações essencialmente violentas, assaltos, seqüestros, estupros, abusos sexuais infantis, acidentes naturais, acidentes automobilísticos entre outros são considerados potenciais eventos traumáticos. De acordo com os critérios do DSM-IV, o TEPT é diagnosticado se os sintomas persistirem por quatro semanas após a ocorrência do trauma e se redundarem em comprometimento social e ocupacional significativos.

Quais são seus sintomas?

Parte das vitimas de experiências traumáticas desenvolve uma constelação aguda de sintomas de TEPT, que pode ser dividida em três grupos:

1) revivescência do trauma (pesadelos, pensamentos intrusivos, sentimentos incontroláveis, flashbacks).

2) esquiva/entorpecimento emocional (distanciamento afetivo, anestesia emocional).

3) hiperestimulação autonômica (irritabilidade, insônia, hipervigilância).

O ambiente de trabalho pode causar TEPT?

Sim. Eventos potencialmente traumáticos, tais como acidentes, violência, assalto, etc. são muitas vezes imponderáveis e podem ocorrer em qualquer ambiente, inclusive no âmbito profissional. Empresas ligadas a segurança, corporações militares e transportadoras podem apresentar maior probabilidade de ocorrências estressoras e/ou traumáticas.

A mundo corporativo, cada vez mais competitivo, exige demais dos executivos, que precisam atingir metas dificílimas em prazos curtíssimos. Essa cobrança e pressão podem ser fontes de TEPT?

O estresse não pode ser considerado como uma fonte isolada para caracterização do TEPT, mas pode ser um dos fatores convergentes ao transtorno. Estudos evidenciam que situações ansiogênicas recorrentes, podem modificar o limiar de tolerância a eventos estressores aumentando a vulnerabilidade ao TEPT.   

Como tratar o TEPT?

Psicoterapia é a primeira linha de escolha ao tratamento do TEPT, que freqüentemente demanda combinação com intervenções farmacológicas. Em especial a terapia de exposição e reestruturação cognitiva tem surtido bons resultados, que permanecem estáveis ao longo do tempo. Alem dessa, varias outras abordagens podem ser aplicadas no tratamento do TEPT, tais como: Treinamento de Manejo da Ansiedade; Treinamento de Inoculção do Estresse; Relaxamento; Terapia de Inundação; Terapia de Desensitização e Reprocessamento por Movimento dos Olhos e Psicoterapia Interpessoal com orientação psicodinâmica. 

Qual o papel de uma empresa diante de um funcionário que apresente TEPT?

Seria muito importante que as empresas fornecessem consultas qualificadas com profissionais especializados em TEPT, para avaliação e tratamento corretos, caso o funcionário preencha os critérios diagnósticos desse transtorno.

Como os profissionais de RH podem detectar um funcionário que apresente quadro de TEPT?

Com freqüência os indivíduos com TEPT são subdiagnosticados devido a desinformação sobre essa entidade clinica. O TEPT pode apresentar comorbidades tais como: depressão, abuso/dependência de substâncias psicoativas, transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos somatoformes e transtornos dissociativos. Portanto, os profissionais de RH que observarem mudanças importantes no comportamento de funcionários (ex: isolamento afetivo, insônia, agressividade) que atravessaram um ou mais eventos traumáticos, devem encaminhá-los a um psicólogo e/ou psiquiatra familiarizado com o TEPT.